sábado, 17 de julho de 2021

Apenas um palmito

 




 

Texto original:

https://brasil.elpais.com/opiniao/2021-07-07/bolsonaro-e-mito-sim.html

Bolsonaro é mito, sim

O impeachment é urgente para derrubar o homem que já assassinou mais de 525 mil brasileiras e brasileiros, mas para destruir a criatura mítica será preciso refundar o Brasil

ELIANE BRUM

07 JUL 2021 - 11:50 BRT

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Texto editado / NMM:

Bem antes da eleição de 2018, ao ouvir pela primeira vez a massa de crentes políticos ovacionar  Bolsonaro como “mito”, minha primeira reação foi horror. Horror por testemunhar que havia gente —muita gente— disposta a chamar aquele homem violento, obsceno e estúpido de “mito”. Agora, que o “mito” tornou-se o maior responsável pelo extermínio de mais de 525 mil brasileiras e brasileiros, percebo que Bolsonaro é, sim, um mito. E é por ser mito que está tão difícil fazer o impeachment. Não olho para o “mito” que vem da popularização do termo nas redes sociais, pela palavra mitou.  Também não olho pela lente do mito pop, como seria Marilyn Monroe ou Elvis Presley. Olho para o mito como a narrativa/imagem/enredo que explicam  uma sociedade, povo, país.

Parto dos gritos de “mito” da massa embrutecida para interpretar Bolsonaro como uma criatura mitológica feita de todos os nossos crimes. Ele é rigorosamente isto. As violências que constituíram e constituem o que chamamos de Brasil estão todas representadas e atualizadas em Bolsonaro. Este Messias é feito de cinco séculos de crimes, esta humana monstruosidade é constituída por todo o sangue criminosamente derramado.

Bolsonaro contém a trajetória completa. Da fundação do Brasil pela destruição dos povos originários ao último país das Américas a abolir a escravidão negra. Bolsonaro realiza em seu corpo-existência todas as políticas que fizeram do Brasil o que ele é —todos os crimes que fizeram do Brasil o que ele é. E os afirma como valor, como origem e como destino. Seu DNA é Brasil. Se todas as políticas que alicerçaram os genocídios indígenas e negros, assim como as grandes violências, fossem convertidas em carne, elas seriam Bolsonaro. Elas são.

Bolsonaro é uma parte substancial da verdade da nação fundada sobre corpos humanos e não humanos, sobre a violação e esgotamento da natureza, sobre a corrupção dos corpos e do patrimônio comum. Nação fundada e ativamente assim mantida até hoje. O grande mentiroso mente sobre tudo, mas não sobre o que é —nem sobre o Brasil.

Quando Bolsonaro simula uma arma com os dedos, ele está apontando para a população. Para nós. E atira, como a pandemia nos mostrou.

Eu, que gosto de cinema de fantasia, fico imaginando um blockbuster. Um país que torturou e matou por cinco séculos de repente é assombrado por uma criatura humanamente monstruosa que passa a torturar e a matar à luz do dia, no centro da República. Em algum momento, passa a matar também as elites que a engendraram. Como ficção, Bolsonaro é um personagem inverossímil. Como realidade, porém, é mais aterrador do que qualquer personagem de ficção.

A dificuldade de fazer o impeachment de Bolsonaro, assim como a dificuldade de julgá-lo por seus crimes, é justamente porque Bolsonaro é mito. O que ele explica do Brasil está ativo, absolutamente ativo, no processo de impeachment. Assim, mesmo quando Bolsonaro, o homem, é investigado e enfraquecido, como está acontecendo agora, Bolsonaro, o mito, se fortalece, porque é o Brasil encarnado por Bolsonaro que está em ação. É o Brasil sendo Brasil, é um acerto entre semelhantes.

Bolsonaro precisa ser impedido. Mais. Quero vê-lo no banco dos réus do Tribunal Penal Internacional, em Haia, julgado por extermínio contra a população não indígena e por genocídio contra os indígenas, ambos crimes contra a humanidade. Sem estes dois atos formais, não haverá justiça. Mas tudo isto se refere ao homem Bolsonaro. Para o mito, é muito mais complicado. E ainda mais importante.

O que está em curso hoje é (mais) um rearranjo. Um dos grandes, porque este é um dos grandes momentos da história do Brasil.

Bolsonaro, o homem, usou a pandemia para levar a extremos a matança “normal” do Brasil. E, assim, superou extasiado sua própria profecia: não 30 mil numa guerra civil, mas mais de 525 mil numa pandemia. O plano de disseminação do vírus para alcançar “imunidade de rebanho”, supostamente para manter a economia ativa, já está amplamente demonstrado. As últimas denúncias de corrupção na compra de vacinas mostram também que Bolsonaro pode ter atrasado a imunização da população para faturar e/ou deixar outros faturarem propinas. Puramente Brasil. Assassinato e corrupção amalgamados.

Bolsonaro vem com a praga, é a própria praga gestada desde dentro. Mas, ao levar a matança declarada a extremos, Bolsonaro converte os protagonistas da destruição continuada, aquela que é tratada como “normal”, em lideranças “equilibradas”, “sensatas”, “respeitadoras da Constituição”. Democratas, até humanistas. Este serviço de lavanderia feito pelo homem é a melhor oferenda ao mito.

É a relação entre Ricardo Salles, até o mês passado ministro do meio ambiente, e Tereza Cristina, que segue sendo ministra da Agricultura. Salles fazia o serviço sujo de forma espetaculosa para que Tereza Cristina posasse como agronegócio moderno. Esta estratégia é espichada até quase além de seus limites, e então Salles cai —não para mudar, mas para que a política de fundo não mude.

Até aqui, eu cometi uma violenta imprecisão neste texto. Ela está no uso do “nós”. Não existe no Brasil esta unidade chamada “nós”. Nunca existiu. Há uma maioria massacrada e uma minoria que massacra. Esta é a história que Bolsonaro, o mito, nos conta. Em diferentes episódios, parte dos massacrados adere a seus próprios algozes na expectativa de faturar alguma sobra ou por acreditar que este é o único caminho possível para mudar de lugar. Como, em parte, aconteceu na eleição de 2018.

Em algum momento, que esperamos seja logo, o homem Bolsonaro será sacrificado para que o mito permaneça ativo. Porém, quando Bolsonaro cair, seguiremos governados pelo mito e declaradamente por aqueles que só mudam de nome na história do Brasil. É preciso ter presente que não será possível respirar nem por um segundo.

A luta será então muito mais complexa, mais difícil e mais acirrada porque alguns dos mais nefastos jogadores, antes reconhecidos como nefastos jogadores, agora posam de democratas e até de humanistas.

As diferenças fundamentais, hoje pasteurizadas pela cortesia de Bolsonaro ao prestar este serviço de lavanderia inestimável aos donos do país, ressurgirão. E a carnificina elevada a outro padrão seguirá sendo executada. O mito nasce da realidade. Só é possível destruir um mito alterando radicalmente a realidade que ele ecoa e representa. Sem a realidade, o mito se esvazia.

O que quero dizer é que devemos lutar para derrubar — pela Constituição — o homem Bolsonaro. Mas o impeachment de Bolsonaro não é o fim. É só recomeço. Porque só será possível derrubar o homem. O mito seguirá.

Para destruir o mito precisaremos refundar o Brasil. Os massacrados de cinco séculos devem tomar o centro que a eles legitimamente pertence para criar uma sociedade capaz de bem viver sem destruir os suportes de vida do planeta, as outras espécies e a si mesma. Só destruiremos o mito criando outra realidade, um Brasil que não negue sua origem de sangue, mas seja capaz de se inventar de outro jeito.

Esta é a luta. Ao destruir a floresta amazônica, o Brasil se tornou um dos líderes da corrosão do planeta. Estamos em emergência climática. O tempo está contra nós. A derrubada do homem Bolsonaro é um pequeno passo, a destruição do mito é o caminho. E ela é estratégica para que este planeta ainda possa ser uma casa.

Eliane Brum é escritora, repórter e documentarista. Autora dex Brasil, Construtor de Ruínas: um olhar sobre o país, de Lula a Bolsonaro (Arquipélago). Site: elianebrum.com Email: elianebrum.coluna@gmail.com Twitter, Instagram e Facebook: @brumelianebrum

Comentário / NMM:

 

Eliane Brum destaca o que sabem todas as pessoas minimamente esclarecidas: Bolsonaro é um representante da extrema-direita; em outras palavras, fascismo. O Fascismo (aqui com maiúscula porque estou me referindo de fato ao regime político que teve Mussolini como representante mais notório) é assim com o Neoliberalismo – na verdade cresceram juntos. Nesses tempos de hipocrisia e dissimulação, o capital transnacional teria preferido um candidato “limpinho e cheiroso”; mas Bolsonaro foi o que restou na xepa da direita brasileira. E então, o mesmo capital que financiara entusiasticamente o Fascismo e o Nazismo, para proteger o mundo do “comunismo”, tratou de investir pesado na construção do “mito” que derrotaria o PT.

Eliane lembra que o “mito” humano, a hedionda e risível figura de J.M. Bolsonaro, é relativamente fácil de derrotar; mas que tudo aquilo que ele encarna (todo esse conjunto de interesses econômicos, todo o ódio, o preconceito, a pequenez moral) é um monstro que parece renascer sempre, a cada vez com nova aparência.

Eliane, sempre arguta e corajosa, dá entretanto a impressão de estar demasiado preocupada. Compreensível: muitos jornalistas como que se investem do dever, da missão de alertar o público para os perigos que se escondem nas sombras. Mas “meu coração não se cansa de ter esperança”, como cantou Caetano. E, como falou muito tempo antes o filósofo Heráclito, “tudo flui”. O Capitalismo, com sua vestimenta doutrinária (o Neoliberalismo), está passando. Os mitos, encarnados ou não, também passam.

Até porque a própria história do magnificente apelido do imbecil fascista é um mito anedótico, como relata Cidenei Alves, amigo de adolescência. Segundo ele, Bolsonaro recebeu o apelido de ‘Palmito’, porque “era branco e comprido”. A lei do menor esforço, que prevalece na linguagem, tratou de fazer a abreviação. E o resto ficou a cargo dos marketeiros fascistas.




 

 

 

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