Texto original:
https://brasil.elpais.com/opiniao/2021-07-07/bolsonaro-e-mito-sim.html
Bolsonaro é
mito, sim
O
impeachment é urgente para derrubar o homem que já assassinou mais de 525 mil
brasileiras e brasileiros, mas para destruir a criatura mítica será preciso
refundar o Brasil
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Texto editado / NMM:
Bem antes da eleição de
2018, ao ouvir pela primeira vez a massa de crentes políticos ovacionar Bolsonaro como
“mito”, minha primeira reação foi horror. Horror por testemunhar que havia
gente —muita gente— disposta a chamar aquele homem violento, obsceno e estúpido de “mito”. Agora, que o “mito” tornou-se o maior responsável
pelo extermínio de mais de 525 mil brasileiras e brasileiros, percebo que
Bolsonaro é, sim, um mito. E é por ser
mito que está tão difícil fazer o impeachment. Não olho para o “mito” que vem
da popularização do termo nas redes sociais, pela palavra mitou”. Também não olho pela lente do mito pop,
como seria Marilyn Monroe ou Elvis Presley. Olho para o mito como a
narrativa/imagem/enredo que explicam uma sociedade, povo, país.
Parto dos gritos de
“mito” da massa embrutecida para interpretar Bolsonaro como uma criatura
mitológica feita de todos os nossos crimes. Ele é rigorosamente isto. As
violências que constituíram e constituem o que chamamos de Brasil estão todas
representadas e atualizadas em Bolsonaro. Este Messias é feito de cinco séculos
de crimes, esta humana monstruosidade é constituída por todo o sangue
criminosamente derramado.
Bolsonaro contém a
trajetória completa. Da fundação do Brasil pela destruição dos povos originários
ao último país das Américas a abolir a escravidão negra. Bolsonaro
realiza em seu corpo-existência todas as políticas que fizeram do Brasil o que
ele é —todos os crimes que fizeram do Brasil o que ele é. E os afirma como
valor, como origem e como destino. Seu DNA é Brasil. Se todas as políticas que
alicerçaram os genocídios indígenas e negros, assim como as grandes violências,
fossem convertidas em carne, elas seriam Bolsonaro. Elas são.
Bolsonaro é uma parte substancial da verdade
da nação fundada sobre corpos humanos e não humanos, sobre a violação e
esgotamento da natureza, sobre a corrupção dos corpos e do patrimônio comum.
Nação fundada e ativamente assim mantida até hoje. O grande mentiroso mente
sobre tudo, mas não sobre o que é —nem sobre o Brasil.
Quando Bolsonaro simula uma arma com os
dedos, ele está apontando para a população. Para nós. E
atira, como a pandemia nos mostrou.
Eu, que gosto de cinema de fantasia, fico imaginando um blockbuster. Um país que torturou e matou por cinco séculos de repente é assombrado por
uma criatura humanamente monstruosa que passa a torturar e a matar à luz do
dia, no centro da República. Em algum momento, passa a matar também as elites que
a engendraram. Como ficção, Bolsonaro é um personagem inverossímil. Como
realidade, porém, é mais aterrador do que qualquer personagem de ficção.
A dificuldade de fazer o impeachment de
Bolsonaro, assim como a dificuldade de julgá-lo por seus crimes, é justamente
porque Bolsonaro é mito. O que ele explica do Brasil está ativo, absolutamente
ativo, no processo de impeachment. Assim, mesmo quando Bolsonaro, o homem, é
investigado e enfraquecido, como está acontecendo agora, Bolsonaro, o mito, se
fortalece, porque é o Brasil encarnado por Bolsonaro que está em ação. É o
Brasil sendo Brasil, é um acerto entre semelhantes.
Bolsonaro precisa ser impedido. Mais. Quero
vê-lo no banco
dos réus do Tribunal Penal Internacional, em Haia, julgado por extermínio contra a população não indígena e por
genocídio contra os indígenas, ambos crimes contra a humanidade. Sem estes dois
atos formais, não haverá justiça. Mas tudo isto se refere ao homem Bolsonaro.
Para o mito, é muito mais complicado. E ainda mais importante.
O que está em curso hoje é (mais) um
rearranjo. Um dos grandes, porque este é um dos grandes momentos da história do
Brasil.
Bolsonaro, o homem, usou a pandemia para
levar a extremos a matança “normal” do Brasil. E, assim, superou extasiado sua própria profecia: não 30 mil
numa guerra civil, mas mais de 525 mil numa pandemia. O
plano de disseminação do vírus para alcançar “imunidade de rebanho”, supostamente para manter a economia ativa, já está amplamente
demonstrado. As últimas denúncias de corrupção na compra de vacinas mostram
também que Bolsonaro pode ter atrasado a imunização da população para faturar
e/ou deixar outros faturarem propinas. Puramente Brasil. Assassinato e
corrupção amalgamados.
Bolsonaro vem com a praga, é a própria praga
gestada desde dentro. Mas, ao levar a matança declarada a extremos, Bolsonaro
converte os protagonistas da destruição continuada, aquela que é tratada como
“normal”, em lideranças “equilibradas”, “sensatas”, “respeitadoras da
Constituição”. Democratas, até humanistas. Este serviço de lavanderia feito
pelo homem é a melhor oferenda ao mito.
É a relação entre Ricardo Salles, até o mês
passado ministro do meio ambiente, e Tereza Cristina, que segue sendo ministra
da Agricultura. Salles fazia o serviço sujo de forma espetaculosa para que
Tereza Cristina posasse como agronegócio moderno. Esta estratégia é espichada
até quase além de seus limites, e
então Salles cai —não
para mudar, mas para que a política de fundo não mude.
Até aqui, eu cometi uma violenta imprecisão
neste texto. Ela está no uso do “nós”. Não existe no Brasil esta unidade
chamada “nós”. Nunca existiu. Há uma maioria massacrada e uma minoria que
massacra. Esta é a história que Bolsonaro, o mito, nos conta. Em diferentes
episódios, parte dos massacrados adere a seus próprios algozes na expectativa
de faturar alguma sobra ou por acreditar que este é o único caminho possível
para mudar de lugar. Como, em parte, aconteceu na eleição de 2018.
Em algum momento, que esperamos seja logo, o homem Bolsonaro será sacrificado para que o mito permaneça
ativo. Porém, quando Bolsonaro cair, seguiremos governados pelo mito e
declaradamente por aqueles que só mudam de nome na história do Brasil. É
preciso ter presente que não será possível respirar nem por um segundo.
A luta será então muito mais complexa, mais
difícil e mais acirrada porque alguns dos mais nefastos jogadores, antes reconhecidos como
nefastos jogadores, agora posam de democratas e até de
humanistas.
As diferenças fundamentais, hoje
pasteurizadas pela cortesia de Bolsonaro ao prestar este serviço de lavanderia
inestimável aos donos do país, ressurgirão. E a carnificina elevada a outro
padrão seguirá sendo executada. O mito nasce da realidade. Só é possível destruir
um mito alterando radicalmente a realidade que ele ecoa e representa. Sem a
realidade, o mito se esvazia.
O que quero dizer é que devemos lutar para
derrubar — pela Constituição — o homem Bolsonaro. Mas o impeachment de
Bolsonaro não é o fim. É só recomeço. Porque só será possível derrubar o homem.
O mito seguirá.
Para destruir o mito precisaremos refundar o
Brasil. Os massacrados de cinco séculos devem tomar o centro que a eles
legitimamente pertence para criar uma sociedade capaz de bem viver sem destruir
os suportes de vida do planeta, as outras espécies e a si mesma. Só
destruiremos o mito criando outra realidade, um Brasil que não negue sua origem
de sangue, mas seja capaz de se inventar de outro jeito.
Esta é a luta. Ao destruir a floresta
amazônica, o Brasil se tornou um dos líderes da corrosão do planeta. Estamos em
emergência climática. O tempo está contra nós. A derrubada do homem Bolsonaro é
um pequeno passo, a destruição do mito é o caminho. E ela é estratégica para
que este planeta ainda possa ser uma casa.
Eliane Brum é escritora, repórter e
documentarista. Autora dex Brasil, Construtor de Ruínas: um olhar sobre o país,
de Lula a Bolsonaro (Arquipélago). Site: elianebrum.com Email: elianebrum.coluna@gmail.com Twitter, Instagram e Facebook: @brumelianebrum
Comentário / NMM:
Eliane Brum destaca o
que sabem todas as pessoas minimamente esclarecidas: Bolsonaro é um
representante da extrema-direita; em outras palavras, fascismo. O Fascismo
(aqui com maiúscula porque estou me referindo de fato ao regime político que
teve Mussolini como representante mais notório) é assim com o
Neoliberalismo – na verdade cresceram juntos. Nesses tempos de hipocrisia e dissimulação, o capital transnacional teria
preferido um candidato “limpinho e cheiroso”; mas Bolsonaro foi o que restou na
xepa da direita brasileira. E então, o mesmo capital que financiara
entusiasticamente o Fascismo e o Nazismo, para proteger o mundo do “comunismo”,
tratou de investir pesado na construção do “mito” que derrotaria o PT.
Eliane lembra que o “mito”
humano, a hedionda e risível figura de J.M. Bolsonaro, é relativamente fácil de
derrotar; mas que tudo aquilo que ele encarna (todo esse conjunto de interesses
econômicos, todo o ódio, o preconceito, a pequenez moral) é um monstro que
parece renascer sempre, a cada vez com nova aparência.
Eliane, sempre arguta e
corajosa, dá entretanto a impressão de estar demasiado preocupada. Compreensível:
muitos jornalistas como que se investem do dever, da missão de alertar o
público para os perigos que se escondem nas sombras. Mas “meu coração não se
cansa de ter esperança”, como cantou Caetano. E, como falou muito tempo antes o
filósofo Heráclito, “tudo flui”. O Capitalismo, com sua vestimenta doutrinária
(o Neoliberalismo), está passando. Os mitos, encarnados ou não, também passam.
Até porque a própria história
do magnificente apelido do imbecil fascista é um mito anedótico, como
relata Cidenei Alves, amigo de adolescência. Segundo ele, Bolsonaro recebeu o
apelido de ‘Palmito’, porque “era branco e comprido”. A lei do menor esforço,
que prevalece na linguagem, tratou de fazer a abreviação. E o resto ficou a
cargo dos marketeiros fascistas.
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