Ilustração: NMM
O dicionário Aurélio registra duas
acepções do verbo “judiar”: escarnecer e maltratar.
O verbo estava em desuso; mas está
sendo resgatado pelo genocida Netanyahu.
Sem delongas, seguem condensações de
textos que descrevem as atrocidades cometidas por Israel em Gaza.
Estarão disponibilizados os links dos
textos originais.
Nelson M. Mendes
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Em Gaza
não há presentes, se as crianças pudessem escrever ao Papai Noel apenas
pediriam para morrer
06 Janeiro
2025
O artigo é
de Rita Baroud,
estudante palestina, publicado por Repubblica,
24-12-2024.
Em Gaza, o tempo parou
de fluir. Aqui em Gaza, onde o barulho dos aviões e das explosões
nunca cessa, a alegria do Natal está ausente.
Nas ruas da
minha cidade não há decorações nem risadas – apenas restos de casas
destruídas e sonhos desfeitos.
Gaza conhece bem a dor, mas em
dezembro, no inverno, o sofrimento do povo de Gaza duplica.
As famílias ficam presas entre o frio intenso e paredes em ruínas que não
oferecem proteção.
As famílias
vivem em tendas esfarrapadas cercadas por poças de água após as tempestades,
enquanto as crianças tentam fazer fogueiras usando lixo apenas para aquecer as
mãos.
Ontem à
noite, enquanto caminhava pelos becos do bairro, perguntei às crianças que
conheci: "O que vocês querem?" Seus rostos estavam cansados.
Mas uma
menininha, de não mais de cinco anos, carregava no ombro uma caixa de papelão
na qual recolhia restos de comida podre que recuperava de pilhas de lixo. Eu
perguntei a ela: “O que você quer?” Ela parou por um momento e depois respondeu
com uma voz suave que carregava o peso do mundo: “Gostaria de encontrar comida
para alimentar meus irmãos mais novos. Meu pai perdeu membros e minha mãe
foi martirizada [morta]. Eu sou responsável por eles."
Eu não pude
responder. As palavras me falharam quando olhei para ela. Naquele momento, tudo
parecia insignificante comparado à dor naqueles olhinhos.
Em todo o
mundo, crianças escrevem cartas ao Papai Noel pedindo brinquedos
e presentes. Mas em Gaza, se as crianças
escrevessem alguma coisa, seria para pedir a morte, como fuga de uma vida que
lhes roubou a infância e destruiu os seus sonhos.
Em Gaza,
as crianças esperam que hoje seja o último dia, porque os dias que virão não
trarão nada além de mais fome, medo e silêncio ensurdecedor.
Gaza existe
à margem da vida, isolada de um mundo que parece tê-la esquecido completamente.
Em Gaza, tudo
está paralisado: não há eletricidade, não há água potável, não há vida normal.
Mas, longe deste canto do mundo, as cidades se iluminam com as cores do Natal,
e as pessoas trocam presentes.
O mundo não
parou nem por um momento para se perguntar: como sobrevivem dois milhões de
pessoas sem horizonte? Como continuam a viver em meio à completa ausência de
tudo?
Mais de 444
dias, sem respostas.
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A despedida final de uma pediatra de Gaza para seus nove filhos mortos por Israel: "Ela dedicou sua vida a salvar crianças"
28 Mai 2025
A
reportagem é de Malak A Tantesh e Lorenzo Tondo,
publicada por El Diario, 26-05-2025.
Na manhã de
sexta-feira, como todos os dias, a doutora Alaa al-Najjar se
despediu de seus dez filhos antes de sair de casa. E como todos os dias, com
a guerra em Gaza e
os ataques israelenses, Al Najjar estava preocupada em deixá-los em casa e ir
trabalhar.
Mas a mulher
de 35 anos, uma respeitada pediatra no Complexo Médico Nasser,
teve que ir trabalhar para cuidar de bebês feridos, sobreviventes dos ataques
israelenses.
Algumas
horas depois, os corpos carbonizados de sete de seus filhos chegaram ao
hospital onde ela trabalha. Dois outros corpos estavam sob os escombros. Dos
seus dez filhos, apenas um sobreviveu, junto com seu marido, Hamdi al
Najjar, 40, que também é médico. Ambos estão hospitalizados.
Imagens
compartilhadas pelo chefe do Ministério da Saúde de Gaza mostram os corpos
queimados e desmembrados das crianças sendo retirados dos escombros da casa da
família.
Relata Ali
al-Najjar, irmão mais velho de Hamdi, marido de Alaa: “Soube
que a casa tinha sido bombardeada, e fui para lá. Quando cheguei, encontrei meu
sobrinho Adam caído na rua, sob os escombros; mas sua alma ainda
estava lá. Meu irmão jazia do outro lado, sangrando profusamente na cabeça e no
peito, e com o braço decepado. Ele respirava com dificuldade”.
Ali foi quem
chamou a equipe médica e levou os dois sobreviventes ao hospital. Então começou
a busca por seus nove sobrinhos e sobrinhas sob os escombros.
Alaa al-Najjar correu
para o local da explosão enquanto os socorristas retiravam o corpo de sua
filha Revan dos escombros. Em meio às lágrimas, ela implorou
que a deixassem abraçá-la uma última vez.
Fontes do
Hospital Nasser, que transportaram os corpos das crianças para o necrotério,
revelaram que a mãe não conseguiu identificá-los devido à extensão das
queimaduras.
A médica
voltou ao hospital para ver seu filho de 11 anos, Adam, e seu
marido.
“Alaa foi
ao necrotério, abraçou seus filhos, recitou o Alcorão e rezou
por eles”, diz o Dr. Ahmed al-Farra, 53,
diretor do departamento infantil do Complexo Médico Nasser.
"Ela
estava constantemente preocupada com os filhos enquanto estava no hospital.
Quando soube que uma casa havia sido bombardeada no bairro de Qizan al-Najjar,
seu coração maternal sentiu que algo estava errado", lembra Farra.
Depois de se
despedir pela última vez de seus sete filhos, Alaa foi para o quarto onde seu
único filho sobrevivente estava sendo tratado. "O marido dela sofreu
ferimentos graves, disse Farra. “O estado do filho dela era relativamente
melhor; seus ferimentos eram de moderados a graves”.
O exército
israelense emitiu inúmeras ordens de evacuação e, na semana passada, ordenou
que os moradores de Khan Yunis
saíssem porque a cidade estava prestes a se tornar uma zona de
"combate". Muitos moradores não têm para onde fugir depois de um ano
e meio de conflito, durante o qual foram deslocados diversas vezes. Durante
esse período, mais de 54.000 pessoas morreram em Gaza, das
quais mais de 16.500 eram crianças.
Farra tem apenas um desejo: “Minha
única esperança é que aqueles que morreram não sejam apenas nomes no papel.
Fomos criados como qualquer outro ser humano neste mundo. E como qualquer outro
ser humano, temos o direito de viver”.
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Médicos Sem Fronteiras: dezenas de palestinos são massacrados em distribuição de alimentos em Gaza
03 Junho
2025
Dezenas
de palestinos foram mortos e
centenas ficaram feridos neste domingo, 1º de junho, alvejados por
drones, helicópteros, barcos, tanques e soldados israelenses, enquanto
esperavam para receber alimentos nos recém-criados centros de distribuição
da Fundação Humanitária de Gaza, em Rafah.
A informação
é publicada pela Assessoria de Imprensa do Médicos Sem Fronteiras, 02-06-2025.
“Este novo
sistema de entrega de ajuda é perigoso e ineficaz. Resultou em mortes e
ferimentos de civis. A ajuda humanitária deve ser fornecida apenas por
organizações que tenham a competência e a determinação para fazê-lo com
segurança e eficácia”, afirma Claire Manera, coordenadora de
emergência da MSF.
Equipes
de MSF no hospital Nasser trataram pacientes
em estado crítico que foram submetidos a cirurgias. A própria equipe médica
teve que doar sangue.
“Os
corredores do hospital estavam lotados de pacientes, porque os quartos já
estavam lotados de feridos”, relatou Nour Alsaqa, da equipe de
comunicação de MSF em Gaza.
“Eles
pareciam arrasados e perturbados por retornarem feridos e de mãos vazias após a
tentativa de garantir comida para seus filhos”, acrescentou.
Mansour
Sami Abdi, pai de
quatro filhos, descreveu o caos: "Disseram para levarmos a comida e depois
atiraram de todas as direções. Isso não é ajuda humanitária. É mentira. Devemos
ir buscar comida para nossos filhos e morrer?"
Mohammad
Daghmeh, de 24 anos,
lamentou: "Fui baleado às 3h10 da manhã. Estávamos encurralados; um homem
tentou me tirar dali, levou um tiro na cabeça e morreu no meu peito. Tínhamos
ido lá apenas pela comida”.
Esta é a
segunda vez que este novo sistema de distribuição de ajuda humanitária resulta
em derramamento de sangue. Em 27 de maio, na primeira tarde de distribuição
em Rafah, as forças israelenses atiraram em dezenas de pessoas,
enquanto quantidades totalmente insuficientes de suprimentos básicos eram
distribuídas em meio ao caos.
Como
resultado do cerco total imposto pelas autoridades israelenses em 2 de março,
100% de Gaza está agora em risco de fome,
segundo as Nações Unidas. Mais de 2 milhões de pessoas que estão em
grande parte privadas de alimentos, água e medicamentos há três meses.
MSF reforça que, juntamente com as
ordens de deslocamento e as campanhas de bombardeio que matam civis, o uso de
ajuda humanitária como arma pode ser considerado crime contra a humanidade.
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Em Gaza “não há apenas uma crise humanitária”, Israel enfrenta “uma crise de credibilidade”
05 Junho
2025
A reportagem
é de Jorge Wemans, publicada por 7Margens,
03-06-2025.
No Jewish
News os editoriais são relativamente raros e nunca avançaram qualquer
crítica ao Governo ou ao exército israelense. O editorial de 3 de junho marca
um primeiro distanciamento crítico, ainda que tênue.
A razão
desta posição fundamenta-se no facto do “Hamas ter
afirmado esta semana que pelo menos 27 pessoas foram mortas e 90 feridas” pelo
exército israelense “enquanto aguardavam ajuda supervisionada pela nova Fundação Humanitária de Gaza
(GHF), apresentada por Israel como um instrumento de distribuição
de ajuda alimentar em Gaza.
Mas é acusada por vários países ocidentais e observadores independentes de ter
como objetivo ajudar Israel a atingir os seus objetivos militares, contornando
a ONU e excluindo os palestinos.
A nova Fundação
Humanitária de Gaza é apoiada pelos EUA e iniciou a
distribuição de alimentos no dia 26 de maio. Mais de meia centena de
palestinos foram mortos pelo exército israelense e centenas
feridos durante três operações de distribuição de alimentos, de acordo com
informações veiculadas pelo Ministério da Saúde de Gaza, dirigido pelo Hamas.
“Transparência
não é uma ameaça”
Perante a
impossibilidade de obter uma visão dos acontecimentos a partir de fontes
independentes e imparciais, o Jewish News defende que:
“Autorizar a entrada de jornalistas em Gaza permitiria obter
relatos precisos sobre o novo sistema de distribuição de ajuda, e se está, ou
não, a ser manipulado.”
O jornal
acrescenta: “Queremos ver Jeremy Bowen na BBC,
relatando no local os moradores de Gaza a receberem a ajuda
organizada por Israel. Transparência não é uma ameaça, é uma tábua
de salvação, um separador de águas.”
O editorial
não aceita a permanente desculpa israelense sobre a inexistência de condições
de segurança para os jornalistas trabalharem: “Os correspondentes de guerra não
são estranhos ao perigo. Se Israel quer que o mundo veja a
verdade, deve deixá-los vê-la”.
De acordo
com várias investigações, desde 7 de outubro de 2023,
o exército israelense matou em
Gaza mais 230 jornalistas e profissionais de mídia.
Estes números superam em muito o total de jornalistas que morreram durante toda
a Segunda Guerra Mundial. O ataque sistemático e mortal a
jornalistas em Gaza está descrito e documentado, por exemplo,
no The Reporting Graveyard, um relatório do jornalista Nick
Turse para a Universidade de Brown (EUA).
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Gaza, a influenciadora que desafiou as bombas com um sorriso foi morta em um ataque das forças militares israelenses
26 Mai 2025
A
reportagem é de Alessia Candito, publicada por La
Repubblica, 26-05-2025.
“Tento levar
um pouco de alegria às crianças, para que elas se esqueçam da guerra por um
tempo.” Com onze anos, Yaqeen Hammad explicou em um de seus
últimos vídeos por que, depois de vinte meses de bombas e quase três de cerco
total, ela ainda tentou afastar crianças como ela da angústia e do horror.
Dentro e fora de Gaza, aquelas pílulas
do Instagram de alegria impensável se tornaram virais. Mas
agora, a menina que desafiou as bombas com um sorriso é apenas mais uma vítima
da ofensiva israelense "Tanques de Gideão",
que custou a vida de outros vinte menores em uma uma escola.
"Yaqeen,
minha irmãzinha, minha alma, foi morta", escreveu seu irmão Mohamed,
um dos poucos sobreviventes, ele próprio um trabalhador humanitário, que vivia
em simbiose com ela.
Yaqeen
Hammad (Foto:
Reprodução/Instagram)
Yaqeen, da pequena ONG palestina,
tornou-se nas redes sociais uma propagadora de esperança e resiliência num
contexto em que abrigos, escolas e hospitais são bombardeados por Israel.
Com seus
vídeos de Gaza, Yaqeen se tornou uma das testemunhas mais
conhecidas da tragédia das crianças na Faixa
de Gaza. Os vulneráveis, por excelência.
Somente
desde 18 de março, quando Israel violou o cessar-fogo,
950 pessoas morreram, de acordo com a Unicef. Um milhão de pessoas,
quase metade da população da Faixa, diz a Save the Children,
estão sofrendo de fome, enquanto a ajuda continua bloqueada nas
travessias. Medicamentos e terapias não chegam há meses.
Yaqeen, em alguns vídeos, ainda é vista
entre os escombros, usando o colete da ONG ou uma jaqueta à prova de balas,
grande demais para ela, distribuindo refeições e roupas.
“Em Gaza nada
é impossível”, ela comentou teimosamente. E sob as bombas, entre os escombros
de prédios, escolas e hospitais, ela falou de esperança, do futuro.
Mas agora
ela é mais uma vítima de uma ofensiva que já custou a vida de pelo menos 15.000
crianças (ou 20.000, considerando os desaparecidos sob os escombros) e feriu
gravemente mais de 175.000. “Esta guerra”, disse o Comitê das Nações
Unidas para os Direitos da Criança, “é um exemplo trágico de brutalidade
humana”. E Yaqeen é mais uma vítima.
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