quinta-feira, 24 de julho de 2025

A última tâmara

 

 

 

Imagem: Monirul Islam


Texto original no site A Terra é Redonda

 

Texto editado / NMM:

Por SALEM NASSER

Em um mundo onde o poder fabrica consenso e apaga cadáveres, a história de Asem e sua tâmara é um raio de luz na escuridão.

 

1.

No Brasil, os crimes julgados por um júri popular são aqueles ditos “de sangue”, em que de algum modo se atenta contra a vida.

Um dos maiores advogados que um dia atuaram perante júris populares, Waldir Troncoso Peres, ensinou que a principal função do advogado de defesa era fazer com que os jurados esquecessem que existia um cadáver!

Pois bem, muita gente, muitos Estados tentam nos fazer esquecer que há um genocídio em curso. São o melhor advogado do genocida.

Noam Chomsky e outros falaram de poderes que, sob o manto da aparente liberdade de expressão e de debate, efetivamente são capazes de jogar para a margem toda nota discordante.

Eu já me imaginei sentado à margem desse grande e poderoso rio, lançando nele a minha modesta isca, tentando fisgar homens e mulheres que quisessem ver as coisas sob outras luzes.

2.

Nos dias que correm, podemos acreditar que  as redes sociais substituíram em alguma medida os grandes meios de comunicação.

Direi apenas que as grandes plataformas e seus donos, de modo geral, também trabalharam, e seguem trabalhando, para que o cadáver do genocídio não ocupe o centro da cena.

Grandes jornais e redes de televisão e rádio caminham para a obsolescência, mas continuam a cumprir um papel fundamental na definição da agenda. Se esses grandes veículos quisessem e tivessem coragem, o genocídio na Palestina seria tema de discussão cotidiana em todos os segmentos da população.

É claro que a razão para a falta de coragem desses veículos é a mesma que explica a covardia de elites políticas, econômicas, intelectuais, especificamente no Ocidente e nos lugares do Sul Global que não sabem pensar autonomamente (que é o caso do Brasil).

3.

Um dos lugares em que se pode acompanhar a tragédia cotidiana, e épica, que se abate sobre os palestinos, sobretudo em Gaza, é o canal Electronic Intifada. Recomendo.

Confesso que não tenho estrutura emocional para assistir todos os dias, mas há dois ou três dias, dei de cara com uma história que é ao mesmo tempo um retrato cristalino do sofrimento, uma lição de resistência, de esperança, de humanidade... com um toque de lirismo.

Os apresentadores, Nora Barrows-Freidman e Ali Abunimah, entrevistam mais uma vez Asem Alnabih, um dos contribuidores assíduos do site. Ele atua como porta-voz da prefeitura de Gaza e é engenheiro e doutorando.

Ali nota de imediato: “Asem, cada vez que falamos com você percebo como você está ficando cada vez mais magro.”

Fala-se da situação em Gaza, das dificuldades. Asem Alnabih se diz privilegiado, ele ainda pode fazer uma refeição por dia, ainda tem algum acesso à energia para carregar o celular, acesso a um pouco de água. E mais, sua mulher e seus filhos não estavam em Gaza quando começou a guerra, e continuam fora; não sofrem, portanto, como centenas de milhares de mulheres e crianças em Gaza.

Asem Alnabih mencionara, no último artigo, ter combinado alguma coisa com a esposa. Indagado a respeito, diz que propusera à mulher encontrar um modo de fazer com que os filhos percebessem profundamente, “no fundo da alma”, o que significava a fome por que passavam os palestinos de Gaza.

Perguntam então qual era a história da tâmara. Ele diz algo como: “Gosto muito de tâmaras, tinha uma única tâmara que guardei comigo por seis meses, deixava para comer em algum momento especial. Um dia, vendo o sofrimento pelo qual minha mãe passava e sabendo que ela gosta também de tâmaras, dei para ela. Eu tenho uma irmã caçula, tem 17 anos, e há dois anos só faz estudar para obter seu diploma, sem escola, sem professores, sem eletricidade… eu realmente acredito que ela é um gênio, vai chegar muito longe… Minha mãe, vendo como minha irmã, Nasmah estudava e se esforçava, resolveu dar a tâmara para ela. Nasmah, por sua vez, achou que o melhor seria que seu, e meu, pequeno sobrinho, Mu`min (fiel, crente), de 7 anos, comesse aquela única tâmara”.

Asem termina dizendo: “Eu desejo que um dia a minha irmã Nasmah possa comer tâmaras sem precisar contá-las!”

Perguntado sobre o que se passa no fundo de sua alma, responde: “Eu sinto que vou morrer”.

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