quinta-feira, 24 de julho de 2025

Gaza: os negociantes do extermínio

  

Arte: Deena So Oteh/ Bloomberg Businessweek

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Texto original no site Outras Palavras

Texto editado / NMM:

 

 50 corporações globais enriquecem com o genocídio em Gaza

 

Francesca Albanese em entrevista a Chris Hedges, no Counterpunch | Tradução: Rôney Rodrigues

 

Quando Francesca Albanese concedeu esta entrevista, o relatório que ela preparou sobre as corporações globais que lucram com o genocídio em Gaza ainda estava embargado. Nestes dias, o documento finalmente foi divulgado. Chama-se “Da economia de ocupação para a economia de genocídio” e mostra a atuação destas corporações em várias áreas.

Albanese compara Gaza e o cerco de Israel a um campo de concentração, afirmando que é insustentável, mas também permite ao mundo testemunhar como uma entidade colonialista ocidental funciona.

Em seu próximo relatório, Albanese detalhará como a Palestina foi explorada pelo sistema capitalista global e destacará o papel de certas corporações no genocídio, inclusive de Estados amigos da Palestina. “Israel sempre explorou a terra, os recursos e a vida dos palestinos”, afirma ela. “Os lucros até aumentaram em uma economia de genocídio.”

Albanese, uma jurista italiana, ocupa o cargo de Relatora Especial da ONU para os Territórios Palestinos Ocupados desde 2022. Sua função é monitorar e denunciar “violações de direitos humanos” cometidas por Israel contra palestinos na Cisjordânia e em Gaza.

Albanese, que recebe ameaças de morte e enfrenta campanhas de difamação orquestradas por Israel e seus aliados, busca corajosamente responsabilizar aqueles que apoiam e sustentam o genocídio. Ela denuncia o que chama de “corrupção moral e política do mundo” pelo genocídio. Ela está preparando um novo relatório que expõe bancos, fundos de pensão, empresas de tecnologia e universidades que auxiliam e incentivam as violações de Israel à lei internacional, aos direitos humanos e aos crimes de guerra. Ela apontou organizações privadas que são “criminalmente responsáveis” por ajudar Israel a cometer o “genocídio” em Gaza. Ela também pediu que altos funcionários da UE sejam acusados de cumplicidade ou crimes de guerra por apoiarem o genocídio. Ela apoiou a flotilha Madleen, que tentou romper o bloqueio a Gaza para levar ajuda humanitária, escrevendo que o barco, interceptado por Israel, carregava não apenas suprimentos, mas uma mensagem de humanidade.

 

Francesca Albanese:  A situação em Gaza se tornou podre, horrível. A fome está reduzindo as pessoas a um estágio de pré-humanidade. Elas são forçadas, empurradas de volta a um espaço que antecede a civilização. E isso é estratégico, é intencional por parte de Israel.

Por que os Estados europeus e os árabes ainda não enviaram suas marinhas para romper o bloqueio?

Chris Hedges: A ação da flotilha com Greta Thunberg foi um ato de constrangimento, de consciência, de coragem. E, ainda assim, muitos de nós que denunciamos o genocídio não conseguimos salvar uma única vida.

Francesca Albanese: Eu nunca paro de falar sobre os palestinos. Porque sou de uma geração que viu o genocídio em Ruanda, na Bósnia e Herzegovina. E ver o genocídio dos palestinos em câmera lenta me fere irreparavelmente.

Minha única forma de cura é garantir que as pessoas acordem e percebam que isso tem as digitais de todos nós.

Porque quando se vê os lucros que empresas registradas em países ocidentais e outros estão obtendo com o genocídio dos palestinos… se perde a fé na humanidade de vez. Ao denunciar o que Israel está fazendo, estamos contribuindo para garantir que a Palestina não desapareça dos mapas.

O sacrifício dos palestinos em Gaza continuará a menos que haja um embargo de armas e que o bloqueio seja rompido, e isso não pode acontecer sem medidas coercitivas. Israel é prejudicial aos palestinos, à região, para muitos de nós, para si mesmo e para seus cidadãos. Isso é algo que os israelenses devem entender.

Certamente não salvamos vidas, mas contribuímos para mostrar a verdadeira face do apartheid de Israel.

Chris Hedges: Eu cobri a retirada das forças iraquianas do norte do Iraque quando estavam realizando uma campanha genocida contra os curdos. As forças da Otan estabeleceram uma zona de exclusão aérea. Sem medidas coercitivas, o genocídio não será interrompido.

Francesca Albanese: Absolutamente. E sabe o que me choca? Quando falo com Estados-membros [da ONU], mesmo os mais “iluminados”, do Ocidente, eles dizem: “Ah, mas você realmente espera que boicotemos Israel?”

A um Estado não cabe boicotar; mas ele tem a obrigação de não cooperar, não comercializar com Israel, não enviar armas, não comprar armas, não fornecer tecnologia militar, não adquirir tecnologia militar. Há uma grande indiferença dos Estados-membros com a violação completa da lei internacional.

Chris Hedges: Há a fome: mais de meio milhão de palestinos estão agora à beira da inanição. E não há água limpa. Nem, claro, suprimentos médicos, ajuda humanitária ou qualquer coisa. 90% dos palestinos estão vivendo em tendas ou ao ar livre. Onde isso vai parar?

Israel está atraindo os palestinos com comida, para amontoar palestinos em complexos vigiados no sul. E, claro, estão atirando em palestinos que, em desespero, buscam algo para comer. Eles vão empurrá-los para o Sinai? Você tem alguma ideia?

Francesca Albanese:  Israel estaria bem com qualquer solução que tire os palestinos da Faixa de Gaza, depois da Cisjordânia e, finalmente, de Israel.

Mesmo nos pequenos pedaços que restaram da Palestina histórica – Faixa de Gaza, Cisjordânia e Jerusalém Oriental – os palestinos não têm direito de existir como um povo. E 80% da população israelense apoia esse nível de violência contra os palestinos. A única vitória para este governo é se livrar dos palestinos.

Eles estão implorando a todos os países que aceitem os palestinos. E o problema é que ninguém pode fazer isso, a menos que os palestinos peçam para serem salvos.

Eyal Weizman, que tem estudado outros genocídios, diz que Israel está seguindo o caminho de confinar as pessoas em um lugar onde não podem sobreviver por conta própria. É como um campo de concentração. Gaza não voltará a ser o que era por causa dos danos ambientais, da contaminação, por tudo o que Gaza é hoje. Mas isso não importa. Para os palestinos de Gaza, Israel é sua terra natal original. E os israelenses, mas mais cedo ou mais tarde, teriam que enfrentar isso. Sinto muito, mas vocês, israelenses, estão vivendo em terras roubadas.

Chris Hedges: Israel não está apagando apenas fisicamente a Palestina, pois atacou também suas universidades, museus, centros culturais. E matou intelectuais, escritores, poetas, mais de 200 jornalistas, médicos.

Fale sobre as intensas campanhas que foram movidas contra você pelo AIPAC e pelo lobby israelense, porque seus relatórios tornam difícil para Israel apagar o que fez e o que está acontecendo.

Francesca Albanese: Qualquer um que ousou denunciar a realidade abominável na Palestina foi acusado de pró-Hamas, pró-terrorismo, antissemita – a usual ladainha de falsidades.

Então o que aconteceu comigo não é único. O que acho único é que os ataques continuam a crescer porque eu não desisto. Quanto mais me ameaçam, mais eu digo: deixe-me ver como posso fazer melhor meu trabalho.

São realmente cães latindo: o objetivo é me distrair; e não vão conseguir porque eu os conheço, porque venho de um lugar assolado pela máfia.

Por que sou assim? Por que não tenho medo deles? Vivo minha vida de uma forma cheia de significado. Amo minha família, meus amigos, meus colegas, e não tenho arrependimentos, porque estou fazendo o que todos deveriam fazer.

Não conseguem me calar. Não me importo de ser odiada por esse bando de capangas e charlatães que defendem o genocídio.

Minha âncora continua sendo a lei internacional. Isso se aplica a todos nós. Então não estou trazendo meus preceitos ou minha ideologia. O que incomoda os detratores é que uso a solidez dos fatos e da lei para dizer quem eles são: genocidas ou apoiadores de um genocídio.

Chris Hedges: Houve muitos holocaustos: dos armênios, dos quenianos, etc. Na fome de Bengala em 1943, três milhões de indianos morreram.

E esses Holocaustos não são reconhecidos por seus perpetradores. Aimé Césaire, em Discurso sobre o Colonialismo, diz que o Holocausto dos judeus, na Segunda Guerra, ressoou porque foi contra outros europeus brancos. E, claro, tem sido o Sul Global, liderado pela África do Sul, que se levantou contra o genocídio. Isso está reconfigurando a comunidade global?

Francesca Albanese: Acho que sim. Não tão rápido quanto o fim do genocídio exigiria, mas está. Nunca ouvi tantas pessoas falando a linguagem do direito internacional.

Há também outro aspecto do despertar: nunca antes ouvi tantas pessoas conectando os pontos entre o passado e o presente, o passado colonial e o presente.

Sinto que há uma conscientização global sobre a dor e as feridas do colonialismo. Israel está dando a oportunidade de entender o que é o colonialismo de povoamento.

Mas continuo dizendo que o genocídio em Gaza não parou porque é lucrativo para muitos. É um negócio. Há entidades corporativas, inclusive de Estados amigos da Palestina, que há décadas fazem negócios e lucram com a economia da ocupação palestina.

Mas os lucros continuaram e até aumentaram quando a economia da ocupação se transformou em uma economia de genocídio. Os palestinos forneceram esse campo de treinamento ilimitado para testar tecnologias, armas, técnicas de vigilância, que agora estão sendo usadas contra pessoas em todos os lugares, do Sul ao Norte Global.

Veja o que está acontecendo nos EUA ou na Alemanha. Somos espionados. Veja o uso de drones, de biometria. Todas essas coisas foram testadas primeiro nos palestinos.

O capitalismo desenfreado, racial e colonial, é prejudicial a todos nós.

Mas vejo uma revolução em gestação. Muitos judeus não querem que os crimes de Israel sejam cometidos em seu nome.

O Grupo de Haia, uma coalizão formada principalmente de países do Sul Global para apoiar as côrtes[1] internacionais em decisões sobre o genocídio na Palestina, deveria incluir muitos outros países – principalmente do Ocidente. Mas aqui estamos: passos de bebê.

Chris Hedges: Você pode falar sobre algumas das corporações globais que estão lucrando com o genocídio e como estão lucrando?

Francesca Albanese: Não poderei dizer muito porque o relatório ainda está embargado. Mas decidi listar cerca de 50 entidades corporativas, de diversos setores: armas, tecnologia, construção, turismo, bens e serviços, cadeia de suprimentos.

E há uma rede de facilitadores como seguradoras, fundos de pensão, fundos de riqueza, bancos, universidades, instituições de caridade. É um ecossistema sustentando essa ilegalidade.

O setor privado historicamente tem sido um condutor do colonialismo de ocupação. Pense nas Companhias das Índias nos anos 1600, por exemplo.

Mas também há casos onde empresas ou entidades privadas não foram os condutores, mas os facilitadores, fornecendo ferramentas, fundos para empreendimentos coloniais que depois lhes renderam lucros.

Não é novo que empresas lucrem com genocídios, mas pense no que aconteceu durante o Holocausto. Os julgamentos dos industriais do Holocausto ajudaram a entender como empresas fizeram negócios com a tragédia de milhões de judeus.

E é chocante ver que algumas dessas empresas estão envolvidas no genocídio dos palestinos.

Notifiquei 48 empresas e a resposta foi: “Mas não é nossa culpa, é Israel”. “Não cabe a você nos dizer o que fazer, são os Estados”. Não, sinto muito. Hoje a ocupação é ilegal. Israel foi notificado, está sendo investigado direta ou indiretamente em pelo menos três processos por genocídio, crimes contra humanidade e crimes de guerra. Vocês não podem continuar business as usual. Por exemplo, há empresas de turismo que promovem propriedades em assentamentos; ou agentes imobiliários que vendem “bairros anglófonos agradáveis no coração de Judeia e Samaria”. Isso é normalização da ocupação por um grupo, e essas empresas certamente perderão muitos clientes quando eles souberem o que elas estão fazendo.

Chris Hedges: O TPI e a ONU se manifestaram contra o genocídio, mas não têm mecanismos de execução. Como você vê essas organizações e seu papel no genocídio?

Francesca Albanese: Mecanismos até existem. Os Estados-membros da Côrte Internacional de Justiça (CIJ) têm obrigação de executar as decisões dela. No ano passado, o Conselho de Segurança da ONU aprovou uma resolução ordenando cessar-fogo em Gaza, mas ela não foi respeitada. Nunca se faz nada.

E de certa forma, sim, concordo com você. Israel é visto como parte do colonialismo ocidental, da confrontação do Ocidente com o resto do mundo, o que é vergonhoso. Não deveríamos estar ainda nesta ótica racializada.

Somos parte da mesma família. Não importa sua côr, seu deus ou falta dele. Erguemos barreiras que precisamos derrubar. Esta é a chance – este genocídio está desencadeando algo mais.

A guerra contra o Irã era totalmente previsível, porque Israel semeia guerras na região há décadas. Bombardear o Irã era o objetivo de longo prazo de vários governos israelenses, e finalmente aconteceu.

O que Israel tem a ganhar com a morte de inocentes, iranianos ou israelenses? Por isso digo: isso precisa parar. Os Estados empurram com a barriga, esperando a UE ou a ONU intervir. Tudo começa com os principais Estados-membros, e é por isso que mais uma vez elogio muito o Grupo de Haia.



[1] O editor resgata os acentos diferenciais de timbre, banidos da nossa ortografia.

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