sábado, 16 de agosto de 2025

Como deve o Brasil se defender dos EUA

 

 

Lula e Donald Trump

Lula e Donald Trump (Foto: ABR | Reuters)

 

Texto de Reynaldo Aragon com 31.267 caracteres

Texto editado / NMM com 5.833 caracteres:

O governo Trump, ao decidir classificar cartéis de drogas latino-americanos como organizações terroristas, tenta repetir, em nova escala, o Plan Colombia, dos anos 1990, que serviu para o avanço dos Estados Unidos na região sob a bandeira do combate às drogas.

O objetivo estratégico é provocar incidentes diplomáticos calculados que empurrem governos-alvo para um rompimento unilateral. Essa ruptura forneceria a Washington o pretexto jurídico e político para acionar seu arsenal de medidas coercitivas sem restrições impostas por convenções ou tratados internacionais.  

Essa “doutrina da provocação” combina pressão econômica e campanha para apresentar o país como conivente com o crime organizado transnacional.

A melhor defesa brasileira será não aceitar a provocação, fortalecendo simultaneamente sua autonomia material e informacional.

Tudo começa pela pressão econômica: tarifas injustificadas visam provocar reações que possam ser vistas como “evidência” de que o Brasil não quer cooperar. Em seguida, grupos criminosos são classificados como “terroristas”, o que coloca o Brasil diante de um dilema: aceitar influência de agências norte-americanas na segurança interna ou ser acusado de “proteger terroristas”. Finalmente, ONGs, estudos acadêmicos patrocinados e declarações de parlamentares estrangeiros passam a difundir a narrativa de que o Brasil é leniente com o crime organizado e conivente com redes transnacionais.

Se a provocação for bem-sucedida, o Brasil não apenas enfrentará sanções e restrições, mas será transformado, aos olhos da opinião pública global, no “culpado” de um colapso diplomático cuidadosamente arquitetado por Washington.

O poder coercitivo dos Estados Unidos contra países e empresas opera com alcance extraterritorial, através de dispositivos como o IEEPA, o Kingpin Act, o Magnitsky Act, o Patriot Act e outros instrumentos. 

O Brasil precisa negar o estopim, buscar parcerias alternativas, evitar a tutela externa e construir, nos campos jurídico e jornalístico, uma narrativa que impeça a captura reputacional que transforma prudência soberana em “conivência”. Sem essa preparação, o arsenal de Washington não precisa ser plenamente acionado para produzir o efeito desejado: bastam anúncios e insinuações para que o mercado faça o trabalho.

A escalada é desenhada para induzir o Brasil a reagir de forma emocional e romper canais diplomáticos, entregando aos Estados Unidos a justificativa política e jurídica para manter ou ampliar o cerco.

 O Brasil precisa preparar respostas calibradas, evitando o conflito, e simultaneamente fortalecer sua autonomia econômica, tecnológica e informacional.

A antecipação é a chave para neutralizar a doutrina da provocação. A leitura integrada de certos sinais permite ao Brasil não apenas antecipar movimentos, mas também agir para desmontar narrativas, reforçar parcerias estratégicas e criar redundâncias econômicas e tecnológicas.

Washington precisa construir consenso interno e externo de que essas medidas são legítimas e inevitáveis. Esse trabalho é realizado por think tanks, ONGs, empresas de consultoria, veículos de imprensa, universidades e especialistas independentes.

A operação começa com um enquadramento linguístico. Termos como “paraíso de organizações criminosas transnacionais”, “ponto cego da segurança hemisférica” ou “elo vulnerável no combate ao narcotráfico” são repetidos em relatórios, entrevistas e painéis internacionais, criando uma base semântica que associa automaticamente o país a risco e omissão. Em seguida, entram os “estudos de caso” e “investigações”, muitas vezes produzidos em colaboração com agências ou órgãos dos EUA, mas publicados por entidades que se declaram independentes.

Essa narrativa é amplificada por redes sociais e pela mídia tradicional.

A guerra informacional também se manifesta na diplomacia pública, em discursos na ONU, OEA e outros foros multilaterais. Paralelamente, vazamentos seletivos para a imprensa reforçam a imagem de que o Brasil está no epicentro de um problema que exige resposta internacional.

O objetivo é saturar o espaço informacional. Quando esse estágio é atingido, qualquer resposta brasileira que questione as medidas passa a ser interpretada como prova adicional de resistência a “cooperar” contra um inimigo comum.   

Neutralizar a doutrina da provocação exige mais do que respostas técnicas. A primeira linha de defesa é separar a cooperação legítima de tutela extraterritorial. O Brasil deve evidenciar, com dados e exemplos verificáveis, que colabora no combate ao crime organizado transnacional, mas em termos soberanos.

O Brasil deve apresentar indicadores concretos de combate a redes criminosas, para mostrar que rejeitar a presença militar ou operações diretas dos EUA não significa ser “leniente” com o narcotráfico.

A eficácia dessa contra-argumentação depende de consistência e repetição. Ela deve estar presente em discursos oficiais, entrevistas, documentos técnicos, relatórios internacionais e articulações diplomáticas, de modo a saturar o espaço informacional com uma versão factual e coerente dos fatos. Só assim o Brasil pode impedir que a narrativa de Washington se consolide, justificando medidas coercitivas.

A defesa contra a doutrina da provocação deve ser simultaneamente diplomática, econômica, tecnológica e informacional. É necessário ampliar alianças regionais e com parceiros não alinhados a Washington — no BRICS, na União Africana, na ASEAN e em países do Oriente Médio.

Na frente econômica, a estratégia exige a diversificação de mercados de exportação e importação. É igualmente essencial ampliar o uso de moedas locais e sistemas de pagamentos alternativos ao dólar.

No campo tecnológico, é preciso buscar a parcerias estratégicas, fortalecer a ciberdefesa, incentivar a produção local de semicondutores, gerar mecanismos de redundância para data centers, energia e comunicações, garantindo operação contínua mesmo diante de bloqueios ou restrições impostas por fornecedores estrangeiros.

A dimensão informacional é o elo integrador dessa estratégia. É preciso investir em inteligência estratégica para desativar narrativas adversas antes que se consolidem.

A cruzada antidrogas de 2025 reativa, portanto, com instrumentos mais potentes, o Plan Colombia. O objetivo de Washington é levar o Brasil ao rompimento, abrindo caminho para sanções, tarifas, controles tecnológicos e isolamento reputacional. A resposta brasileira inteligente é não aceitar a provocação. Deve manter a iniciativa diplomática, diversificar parceiros e rotas, separar cooperação legítima de tutela extraterritorial e mostrar que tem capacidade para combater o crime. Evitando-se o rompimento, o projeto dos EUA de intensificar as pressões sobre o Brasil  emperra no custo político e econômico doméstico dos próprios Estados Unidos.

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