sábado, 30 de agosto de 2025

"Vou dormir com você porque quero morrer com você."

  

 

Texto no Opera Mundi


Texto editado / NMM:

Da sala de sua casa no bairro de Al Sheikh Radwan, na Cidade de Gaza, onde passou seus 21 anos de vida, a jornalista palestina Sara Awad conversou com a reportagem de Opera Mundi.

“Lembro que, no primeiro mês da guerra, eu dormia ao lado da minha mãe, chorando. Eu disse a ela: ‘Vou dormir com você porque quero morrer com você’.”

A Cidade de Gaza, ao norte da Faixa, tem sido alvo de ataques cada vez mais intensos desde que o exército israelense anunciou a “fase preliminar” da ofensiva contra a cidade.

“Eu sei que se escolher ficar na minha casa, vou morrer e ninguém saberá de mim. Agora é tentar ir para um lugar mais seguro — embora não exista lugar seguro disponível em Gaza.”

Na manhã de domingo, 24 de agosto de 2025, Sara despertou e encontrou a casa tomada por malas e sacolas: seus pais haviam empacotado os pertences da família.

“Em outubro de 2023, o governo israelense deu a primeira ordem de evacuação. Eu, minha família e outros 30 parentes escolhemos permanecer. Foi uma escolha nossa, mas muito pesada, porque tivemos que decidir entre partir ou enfrentar um número massivo de bombas, a falta de comida, água, internet e eletricidade”, relatou Sara.

Em dezembro de 2023, a família foi obrigada a buscar refúgio no hospital Al-Shifa, na parte oeste da Cidade de Gaza, onde permaneceram por 40 dias.

“Não tínhamos nada. Eu dormi no chão, no corredor do hospital, no meio do inverno congelante, sem nenhum cobertor. Eu dizia a mim mesma: ‘isso também vai passar'”, contou Sara.

A situação se agravou quando o hospital começou a ser alvo de ataques. A família conseguiu deixar o local e voltou para sua casa. Permaneceram lá até julho de 2024, quando uma nova ordem de evacuação os levou novamente para a parte oeste, na casa de um familiar, retornando três semanas depois para seu lar.

Diferente das vezes anteriores, agora a família considera abandonar de vez a casa onde viveram por gerações e buscar refúgio em tendas improvisadas no sul do enclave, diante da ameaça iminente de uma invasão total à Cidade de Gaza.

“A Sara que sou agora é diferente de quem eu era antes da guerra. A tristeza e a exaustão estão estampadas no meu rosto.” Enquanto se prepara para deixar a cidade, Sara Awad relembra seus medos, traumas e a fome desde o começo do genocídio em Gaza.

No dia 7 de outubro de 2023, Sara havia passado a noite estudando para uma prova da faculdade. Mas, às seis da manhã, começou a ouvir o som de foguetes. “Desde aquele dia, eu sabia que minha vida nunca mais seria a mesma”.

Sara, seus pais, seus quatro irmãos e sua irmã ficaram longos períodos isolados do mundo, sem eletricidade ou meios de comunicação. “Outros parentes vieram para nossa casa. Sofremos juntos por meses.”

Sara relata que aspectos comuns da vida humana foram subtraídos da sua rotina: refeições, acesso à água potável, e dinheiro para adquirir os poucos suprimentos ainda disponíveis. Sua experiência revela a fome orquestrada como tática de guerra.

“A fome para mim começou no primeiro dia da guerra. Eu não conseguia colocar nada no estômago. O medo me consumia. Como pude ter tanto medo? A morte parecia uma boa escolha em meio à guerra. Por isso, lamento ter estado tão assustada e instável… A guerra me ensinou a poupar energia e não gastá-la com algo que não posso controlar.”

Para Sara, ainda mais difícil do que lidar com a própria fome é tentar explicá-la para seus irmãos menores: “Como você diz a uma criança de 3 anos que não há leite?”

Cada aspecto da vida cotidiana é dificultado — para não dizer impossibilitado — pela ocupação.Faltam alimentos, água, transporte público, combustível, e para sacar dinheiro, os palestinos pagam taxas de 40%.

Sara comenta que a midia hegemônica aborda genericamente a questão da fome, ignorando que a ela “carrega múltiplos sofrimentos”. E pergunta: “Como as pessoas podem resumir a fome em uma ou duas linhas?”

A fome também afeta a vida profissional de Sara. “De março de 2025 até a semana passada, tivemos os dias de maior sofrimento. Passei três dias sem comer nada, exceto uma sopa de lentilha. Fiquei tonta (…) tive que recusar trabalhos porque estava exausta e não conseguia fazer mais nada. Eu precisava poupar forças para o meu corpo. Naqueles meses, preferi ficar em silêncio. Falar gastava energia demais.”

Sara sonhava em se tornar jornalista. O genocídio a afastou dos estudos, mas ela começou a escrever para a Al Jazeera e outros jornais internacionais.

Desde outubro de 2023, as forças israelenses assassinaram mais de 270 jornalistas. “(Em 2023) eu tinha medo de caminhar ao lado de jornalistas, porque sabia que eles eram alvos. Agora, tenho uma perspectiva diferente. O jornalismo é a minha vida. É o lugar para o qual eu escapo, onde despejo toda a minha energia. Agora tenho uma mensagem e quero transmiti-la para o mundo todo. Tenho histórias não contadas para escrever. Esse se tornou o meu dever.”

A Universidade em que Sara estudava — que também era onde seu pai lecionava — foi destruída por bombardeios israelenses. “Minha universidade foi o lugar onde cresci. Meu pai me levava desde criança para suas aulas, e tenho muitas lembranças daquele lugar.”

Apesar de a Universidade Islâmica de Gaza ainda oferecer aulas online, Sara optou por deixar os estudos e concentrar esforços no jornalismo e em obter uma bolsa de estudos para deixar o enclave.

“Eu sonho com educação e uma vida normal. Até que isso aconteça, como posso acompanhar um programa online? Não tenho um laptop. Como vou ligar meu celular e assistir a uma aula — que nem sequer é ministrada por meus professores, porque a maioria deles morreu?”

Às vésperas de possivelmente ter de deixar sua casa para trás, Sara saiu com sua melhor amiga, Huda, que conheceu na Universidade, para caminhar pela Cidade de Gaza.

“(Eu e Huda) nos despedimos dos nossos lugares favoritos e prometemos manter contato, aconteça o que acontecer. Ela também é escritora, também sonha em viajar, em conseguir uma bolsa no exterior. Se tem uma coisa que aprendi com a guerra é que nada é impossível”, disse Sara, sorrindo.

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Foto de abertura: Arquivo pessoal / Sara Awad

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