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editado / NMM:
Da sala de sua casa no bairro de Al Sheikh Radwan, na Cidade de Gaza, onde passou seus 21 anos de vida, a jornalista palestina Sara Awad conversou com a reportagem de Opera Mundi.
“Lembro que,
no primeiro mês da guerra, eu dormia ao lado da minha mãe, chorando. Eu disse a
ela: ‘Vou dormir com você porque quero morrer com você’.”
A Cidade de
Gaza, ao norte da Faixa, tem sido alvo de ataques cada vez mais intensos desde que
o exército israelense anunciou a “fase preliminar” da ofensiva contra a cidade.
“Eu sei que
se escolher ficar na minha casa, vou morrer e ninguém saberá de mim. Agora é tentar
ir para um lugar mais seguro — embora não exista lugar seguro disponível em
Gaza.”
Na manhã de
domingo, 24 de agosto de 2025, Sara despertou e encontrou a casa tomada por
malas e sacolas: seus pais haviam empacotado os pertences da família.
“Em outubro
de 2023, o governo israelense deu a primeira ordem de evacuação. Eu, minha
família e outros 30 parentes escolhemos permanecer. Foi uma escolha nossa, mas
muito pesada, porque tivemos que decidir entre partir ou enfrentar um número
massivo de bombas, a falta de comida, água, internet e eletricidade”, relatou
Sara.
Em dezembro
de 2023, a família foi obrigada a buscar refúgio no hospital Al-Shifa, na parte
oeste da Cidade de Gaza, onde permaneceram por 40 dias.
“Não
tínhamos nada. Eu dormi no chão, no corredor do hospital, no meio do inverno
congelante, sem nenhum cobertor. Eu dizia a mim mesma: ‘isso também vai
passar'”, contou Sara.
A situação
se agravou quando o hospital começou a ser alvo de ataques. A família conseguiu
deixar o local e voltou para sua casa. Permaneceram lá até julho de 2024,
quando uma nova ordem de evacuação os levou novamente para a parte oeste, na
casa de um familiar, retornando três semanas depois para seu lar.
Diferente
das vezes anteriores, agora a família considera abandonar de vez a casa onde viveram por
gerações e buscar refúgio em tendas improvisadas no sul do enclave, diante da
ameaça iminente de uma invasão total à Cidade de Gaza.
“A Sara que
sou agora é diferente de quem eu era antes da guerra. A tristeza e a exaustão
estão estampadas no meu rosto.” Enquanto se prepara para deixar a cidade, Sara
Awad relembra seus medos, traumas e a fome desde o começo do genocídio em Gaza.
No dia 7 de
outubro de 2023, Sara havia passado a noite estudando para uma prova da
faculdade. Mas, às seis da manhã, começou a ouvir o som de foguetes. “Desde
aquele dia, eu sabia que minha vida nunca mais seria a mesma”.
Sara, seus
pais, seus quatro irmãos e sua irmã ficaram longos períodos isolados do mundo,
sem eletricidade ou meios de comunicação. “Outros parentes vieram para nossa
casa. Sofremos juntos por meses.”
Sara relata
que aspectos comuns da vida humana foram subtraídos da sua rotina: refeições,
acesso à água potável, e dinheiro para adquirir os poucos suprimentos ainda
disponíveis. Sua experiência revela a fome orquestrada como tática de guerra.
“A fome para
mim começou no primeiro dia da guerra. Eu não conseguia colocar nada no
estômago. O medo me consumia. Como pude ter tanto medo? A morte parecia uma boa
escolha em meio à guerra. Por isso, lamento ter estado tão assustada e
instável… A guerra me ensinou a poupar energia e não gastá-la com algo que não
posso controlar.”
Para Sara,
ainda mais difícil do que lidar com a própria fome é tentar explicá-la para
seus irmãos menores: “Como você diz a uma criança de 3 anos que não há leite?”
Cada aspecto
da vida cotidiana é dificultado — para não dizer impossibilitado — pela
ocupação.Faltam alimentos, água, transporte público, combustível, e para sacar
dinheiro, os palestinos pagam taxas de 40%.
Sara comenta
que a midia hegemônica aborda genericamente a questão da fome, ignorando que a
ela “carrega múltiplos sofrimentos”. E pergunta: “Como as pessoas podem resumir
a fome em uma ou duas linhas?”
A fome também afeta a vida
profissional de Sara. “De março de 2025 até a semana passada, tivemos os dias
de maior sofrimento. Passei três dias sem comer nada, exceto uma sopa de
lentilha. Fiquei tonta (…) tive que recusar trabalhos porque estava exausta e
não conseguia fazer mais nada. Eu precisava poupar forças para o meu corpo.
Naqueles meses, preferi ficar em silêncio. Falar gastava energia demais.”
Sara sonhava
em se tornar jornalista. O genocídio a afastou dos estudos, mas ela começou a
escrever para a Al Jazeera e outros jornais
internacionais.
Desde outubro
de 2023, as forças israelenses assassinaram mais de 270 jornalistas. “(Em
2023) eu tinha medo de caminhar ao lado de jornalistas, porque sabia que eles
eram alvos. Agora, tenho uma perspectiva diferente. O jornalismo é a minha
vida. É o lugar para o qual eu escapo, onde despejo toda a minha energia. Agora
tenho uma mensagem e quero transmiti-la para o mundo todo. Tenho histórias não
contadas para escrever. Esse se tornou o meu dever.”
A
Universidade em que Sara estudava — que também era onde seu pai lecionava — foi
destruída por bombardeios israelenses. “Minha universidade foi o lugar onde
cresci. Meu pai me levava desde criança para suas aulas, e tenho muitas
lembranças daquele lugar.”
Apesar de a
Universidade Islâmica de Gaza ainda oferecer aulas online, Sara optou por deixar
os estudos e concentrar esforços no jornalismo e em obter uma bolsa de estudos
para deixar o enclave.
“Eu sonho
com educação e uma vida normal. Até que isso aconteça, como posso acompanhar
um programa online? Não tenho um laptop. Como vou ligar meu celular e assistir
a uma aula — que nem sequer é ministrada por meus professores, porque a maioria
deles morreu?”
Às vésperas
de possivelmente ter de deixar sua casa para trás, Sara saiu com sua melhor
amiga, Huda, que conheceu na Universidade, para caminhar pela Cidade de Gaza.
“(Eu e Huda)
nos despedimos dos nossos lugares favoritos e prometemos manter contato,
aconteça o que acontecer. Ela também é escritora, também sonha em viajar, em
conseguir uma bolsa no exterior. Se tem uma coisa que aprendi com a guerra é
que nada é impossível”, disse Sara, sorrindo.
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Foto de
abertura: Arquivo pessoal / Sara Awad
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