Nelson M. Mendes
Somos informados de que a ciência descobriu a inteligência espiritual. O texto começa
informando que, “no início do século XX, o QI era a medida definitiva da inteligência
humana”, e que só nos anos 90 se descobriu a inteligência emocional. O segundo
parágrafo é aberto com pompa e circunstância: “A ciência começa o novo milênio
com descobertas que apontam para um terceiro quociente, o da inteligência espiritual.
Ela [...] pode ser a chave para uma nova era no mundo do negócios.”
Em primeiro lugar, faz-se uma reverência à ciência, essa vaca
sagrada que é venerada com particular devoção pelo menos desde a Revolução
Industrial; e uma significativa referência ao “novo milênio”; porque, afinal, é
preciso lembrar que nós estamos no ápice de um processo civilizatório que
começou lá nas cavernas... Em
seguida, anuncia-se que a inteligência
espiritual poderá ser útil no mundo dos negócios... Pronto, está explicado: se,
no Brasil, tudo acaba em samba, nos países hegemônicos tudo acaba em negócios,
tudo gira em torno do Capital.
Segue o texto informando que a Drª Dana Zohar, que lançou o
livro QS – Inteligência Espiritual,
baseia seu estudo na descoberta, pelo cientistas, de um “Ponto de Deus” no
cérebro. O articulista, entusiasmado e reverente, abre um parágrafo só para
acrescentar:
“O assunto é tão atual que foi abordado em recentes
reportagens de capa pelas revistas americanas Newsweek e Fortune.”
Claro: a referência, o ponto de partida, o Umbigo do Universo
é sempre a realidade, o momento presente. A realidade é Wall Street, é a Universidade de Oxford (onde leciona a
Drª Zohar), é o “mundo dos negócios”. O resto é periferia. Ah, os cientistas
descobriram agora uma tal de inteligência espiritual. Rápido! temos de
descobrir um jeito de ganhar dinheiro com isso!
E aí estamos sob o reinado da burrice espiritual.
O Ocidente contemporâneo já havia, na virada do século XIX
para o XX, levado um “banho de espiritualidade”, tido contato com a exótica “filosofia
oriental”. Claro que tudo aquilo era bobagem. Era só uma questão de tempo até
que a ciência encontrasse todas as respostas e colocasse no seu devido lugar
todas aquelas “superstições” e mitos.
Aí apareceu, logo no começo do século XX, um cara que disse não
haver nenhum caminho racional para as verdades essenciais; que o único caminho
é o da intuição. Esse cara era um tal de Albert Einstein.
Enquanto isso, as “superstições” orientais continuavam
vazando através das barreiras do orgulhoso racionalismo
ocidental. Milenares conhecimentos indianos, chineses, árabes entraram na ordem
do dia. Todo mundo começou a falar de
karma, de reencarnação, de plano astral, de Astrologia, de I Ching, de Tarô. Até
o psicanalista Jung andou estudando essas coisas.
Nos anos 60, cresceu o interesse pela “filosofia oriental”.
Até os Beatles foram à Índia arrumar um guru.
É claro que o Umbigo do Universo reagiu: era preciso
transformar aquele interesse em money. Surgiram revistas especializadas; academias
e centros de estudo proliferaram; gurus de ocasião apareceram em resposta à
demanda.
Mas o interesse, fosse dos profissionais ou do público-alvo,
partia sempre daquele centro a que se
refere Krishnamurti (um dos mestres orientais – de verdade – que o Ocidente
conheceu já na primeira metade do século XX): o ego, a personalidade limitada,
egoísta – e burra.
A partir desse centro é que toda a sabedoria, que não é do Oriente nem do Ocidente, foi avaliada.
E é a partir desse centro
que a descoberta da inteligência
espiritual, ancorada neurologicamente no “Ponto de Deus”, é saudada com
fanfarras, a ponto de merecer matérias nas emblemáticas revistas Newsweek e Fortune.
Tudo bem, o Universo não é um acidente. Tudo tem um
propósito. Inclusive Wall Street; inclusive a Universidade de Oxford; inclusive
os diligentes cientistas que descobriram no cérebro o “Ponto de Deus”;
inclusive o deslumbrado jornalista que vem anunciar ao mundo a boa nova.
Mas eu também não sou um acidente. E também eu tenho um
propósito.
No caso, o propósito é o de alertar sobre a possibilidade de
que, como tantas vezes aconteceu, uma dimensão superior, de luz e saber, venha
a ser instrumentalizada a serviço dos interesses do ego, que essencialmente
padece de (curável) burrice espiritual.
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Maiores informações no texto Contrabando espiritual.
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