sábado, 22 de dezembro de 2018

Burrice espiritual


Nelson M. Mendes

Somos informados de que a ciência descobriu a inteligência espiritual. O texto começa informando que, “no início do século XX, o QI era a medida definitiva da inteligência humana”, e que só nos anos 90 se descobriu a inteligência emocional. O segundo parágrafo é aberto com pompa e circunstância: “A ciência começa o novo milênio com descobertas que apontam para um terceiro quociente, o da inteligência espiritual. Ela [...] pode ser a chave para uma nova era no mundo do negócios.”

Em primeiro lugar, faz-se uma reverência à ciência, essa vaca sagrada que é venerada com particular devoção pelo menos desde a Revolução Industrial; e uma significativa referência ao “novo milênio”; porque, afinal, é preciso lembrar que nós estamos no ápice de um processo civilizatório que começou lá nas cavernas...  Em seguida,  anuncia-se que a inteligência espiritual poderá ser útil no mundo dos negócios... Pronto, está explicado: se, no Brasil, tudo acaba em samba, nos países hegemônicos tudo acaba em negócios, tudo gira em torno do Capital.

Segue o texto informando que a Drª Dana Zohar, que lançou o livro QS – Inteligência Espiritual, baseia seu estudo na descoberta, pelo cientistas, de um “Ponto de Deus” no cérebro. O articulista, entusiasmado e reverente, abre um parágrafo só para acrescentar:

“O assunto é tão atual que foi abordado em recentes reportagens de capa pelas revistas americanas Newsweek e Fortune.”

Claro: a referência, o ponto de partida, o Umbigo do Universo é sempre a realidade, o momento presente. A realidade é Wall Street, é a Universidade de Oxford (onde leciona a Drª Zohar), é o “mundo dos negócios”. O resto é periferia. Ah, os cientistas descobriram agora uma tal de inteligência espiritual. Rápido! temos de descobrir um jeito de ganhar dinheiro com isso!

E aí estamos sob o reinado da burrice espiritual.

O Ocidente contemporâneo já havia, na virada do século XIX para o XX, levado um “banho de espiritualidade”, tido contato com a exótica “filosofia oriental”. Claro que tudo aquilo era bobagem. Era só uma questão de tempo até que a ciência encontrasse todas as respostas e colocasse no seu devido lugar todas aquelas “superstições” e mitos.

Aí apareceu, logo no começo do século XX, um cara que disse não haver nenhum caminho racional para as verdades essenciais; que o único caminho é o da intuição. Esse cara era um tal de Albert Einstein.

Enquanto isso, as “superstições” orientais continuavam vazando através das barreiras do orgulhoso racionalismo ocidental. Milenares conhecimentos indianos, chineses, árabes entraram na ordem do dia.  Todo mundo começou a falar de karma, de reencarnação, de plano astral, de Astrologia, de I Ching, de Tarô. Até o psicanalista Jung andou estudando essas coisas.

Nos anos 60, cresceu o interesse pela “filosofia oriental”. Até os Beatles foram à Índia arrumar um guru.

É claro que o Umbigo do Universo reagiu: era preciso transformar aquele interesse em money. Surgiram revistas especializadas; academias e centros de estudo proliferaram; gurus de ocasião apareceram em resposta à demanda.

Mas o interesse, fosse dos profissionais ou do público-alvo, partia sempre daquele centro a que se refere Krishnamurti (um dos mestres orientais – de verdade – que o Ocidente conheceu já na primeira metade do século XX): o ego, a personalidade limitada, egoísta – e burra.

A partir desse centro é que toda a sabedoria, que não é do Oriente nem do Ocidente, foi avaliada.

E é a partir desse centro que a descoberta da inteligência espiritual, ancorada neurologicamente no “Ponto de Deus”, é saudada com fanfarras, a ponto de merecer matérias nas emblemáticas revistas Newsweek e Fortune.

Tudo bem, o Universo não é um acidente. Tudo tem um propósito. Inclusive Wall Street; inclusive a Universidade de Oxford; inclusive os diligentes cientistas que descobriram no cérebro o “Ponto de Deus”; inclusive o deslumbrado jornalista que vem anunciar ao mundo a boa nova.

Mas eu também não sou um acidente. E também eu tenho um propósito.

No caso, o propósito é o de alertar sobre a possibilidade de que, como tantas vezes aconteceu, uma dimensão superior, de luz e saber, venha a ser instrumentalizada a serviço dos interesses do ego, que essencialmente padece de (curável) burrice espiritual.
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Maiores informações no texto Contrabando espiritual.


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