Nelson M. Mendes
O fim está próximo. Não, não seremos salvos pelo meteoro; ou aniquilados pelo meio-ambiente vingador. (Observem que salvação e aniquilação têm o mesmo sentido.) Tudo isso deverá acontecer em algum momento. Antes, porém, a ordem mundial, predominantemente capitalista, deverá morrer devorando as próprias entranhas.
O saudoso e sábio Alceu Amoroso Lima
declarou, em entrevista ao jornalista Roberto D´Ávila num programa de TV, que
“os regimes não morrem, se suicidam”.
Ele se referia a regimes políticos; mas
obviamente essa análise pode ser aplicada a sistemas econômicos. O Capitalismo,
por exemplo, padece de congênita doença autoimune.
Todo organismo ou sistema apresentam, no
seu fim, “arrancos de cachorro atropelado”, como dizia Nelson Rodrigues (ele
próprio um doentio defensor do sistema moribundo). O Capitalismo vem
apresentando esses estertores praticamente desde o nascimento. Porque, como
dito em vários ensaios anteriores, ele veio para legitimar aquilo que, em
princípio, a civilização pretendia superar: a “lei da selva”, o “direito” que
tem o mais forte de esmagar e expropriar o mais fraco. Essa doutrina resultaria
até em conceitos como “darwinismo social”; e os manuais do Neoliberalismo usam explicitamente
a expressão “instinto animal” (animal
instinct) em referência a uma qualidade, uma competência que devem
desenvolver os operadores econômicos. Obviamente, uma tal proposta
civilizatória é natimorta.
É sabido, por qualquer pessoa
minimamente culta, que todos os sistemas e regimes buscam amparar-se de todas as
formas. É o direito divino dos reis,
é o Absolutismo, é a segregação, é o genocídio, é o Fascismo, é o Stalinismo:
para tudo isso se criam cínicas justificativas econômicas, políticas, sociais,
filosóficas, religiosas. Toda pessoa minimamente culta se espanta com a
credulidade, a complacência e a burrice
dos povos antigos diante de seus exploradores. É fácil ver a burrice antiga. Mas
muitas pessoas minimamente cultas não enxergam a própria burrice diante dos
exploradores, dos carrascos de hoje. Ninguém percebe as falácias putrefatas com
que o Capitalismo busca justificar-se.
Vamos dar como exemplo a situação de um certo “país tropical,
abençoado por Deus e bonito por natureza”.
Esse país nasceu como colônia. Europeus brigaram pelas riquezas tropicais.
Ninguém pensava em “construir uma nação”: o objetivo era pilhar, enricar. Mesmo
os nascidos em solo brasileiro, porém filhos de portugueses, renegavam o chão
em favor da genealogia: sentiam-se portugueses. Esses “híbridos” eram chamados
de mazombos, como lembra Darcy
Ribeiro – aliás, um dos últimos grandes pensadores que se insurgiram contra a
burrice do brasileiro.
Todos nós conhecemos os “neomazombos” – aqueles brasileiros
que vivem de costas para o país e de olho em Miami, New York, Amsterdam, Paris,
Tóquio. O Colonialismo passou, mas permanece nos “corações e mentes”.
Há até pouco tempo, o Brasil era explorado num sistema
neoimperialista. Mas, tanto fez a Casa-Grande local, com apoio da senzala midiotizada, que nós avançamos
para trás: somos hoje explorados num sistema neocolonial. Só as
aparências e os falaciosos rótulos institucionais são diferentes.
Sintomático. Quando um organismo entra em falência, ele
começa a devorar-se a partir da periferia, para preservar os órgãos essenciais.
Na ordem mundial capitalista, a periferia somos nós, o terceiro mundo.
Nos mais recentes “arrancos de cachorro atropelado”, é
sobretudo a periferia que tem sofrido com a autofagia terminal do sistema: são
golpes de estado para levar ao poder dóceis títeres das potências hegemônicas,
sobretudo dos EUA; são pressões ou sabotagens econômicas; são invasões
militares, sob ridículos pretextos, como “buscar armas de destruição em massa”
ou “restaurar a Democracia”; são permanentes e devastadores bombardeios
publicitários, com o fim de manter vivos os inconsistentes mitos do “livre-mercado”,
da “meritocracia”, do “Neoliberalismo” – enfim, todos os fictícios pilares
sobre os quais se sustenta o Capitalismo.
Ah, e quando a crise é realmente aguda – como em 1929 e 2008 –,
as periferias do centro também
sofrem: milhões de pessoas enfrentam a miséria e muitas até optam pelo suicídio
nos países centrais. Na crise de 1929 houve um estadista – Roosevelt – que colocou
a mão visível do Estado para
trabalhar em favor da restauração da velha e carcomida ordem. (Por isso, é até
hoje visto como “comunista” por muitos norte-americanos.) Quando da crise de
2008, o “Poder Econômico Transnacional” (o “Elefante Oculto” mencionado no
ensaio “É a lama, é a lama”) já havia desenvolvido vertiginosa agilidade
financeira, e pôde fazer transfusões de trilhões, das periferias para os
centros, dos pobres para os ricos, a fim de salvar os “órgãos essenciais” do
sistema. Quantias astronômicas de dinheiro público foram desviadas para salvar
os principais responsáveis pela crise.
A periferia é dócil. Décadas de doutrinação nos transformaram
em escravos ávidos por fazer a vontade do senhor. Claro que os “feitores” e “capitães
do mato” trabalham para reprimir os escravos rebeldes, e são devidamente
recompensados pelo senhor, que nem se abala de suas luxuosas instalações na
Metrópole.
Recapitulando: a Ordem Mundial Capitalista está morrendo.
Como todo organismo moribundo, também esse sacrifica o periférico ao central, o acessório ao essencial. Aqui em Pindorama (periferia), legiões de bolsonazistas, analfascistas e anencéfalos
cívicos em geral (os “pobres de direita”, a periferia da periferia) prazerosamente
oferecem seus pescoços no altar da preservação do sistema, talvez achando que
irão com isso conquistar a felicidade no outro mundo.
É a burrice do fim do mundo.
Nenhum comentário:
Postar um comentário