sábado, 9 de março de 2019

A burrice do fim do mundo



Nelson M. Mendes

O fim está próximo. Não, não seremos salvos pelo meteoro; ou aniquilados pelo meio-ambiente vingador. (Observem que salvação e aniquilação têm o mesmo sentido.) Tudo isso deverá acontecer em algum momento. Antes, porém, a ordem mundial, predominantemente capitalista, deverá morrer devorando as próprias entranhas.
O saudoso e sábio Alceu Amoroso Lima declarou, em entrevista ao jornalista Roberto D´Ávila num programa de TV, que “os regimes não morrem, se suicidam”.
Ele se referia a regimes políticos; mas obviamente essa análise pode ser aplicada a sistemas econômicos. O Capitalismo, por exemplo, padece de congênita doença autoimune.
Todo organismo ou sistema apresentam, no seu fim, “arrancos de cachorro atropelado”, como dizia Nelson Rodrigues (ele próprio um doentio defensor do sistema moribundo). O Capitalismo vem apresentando esses estertores praticamente desde o nascimento. Porque, como dito em vários ensaios anteriores, ele veio para legitimar aquilo que, em princípio, a civilização pretendia superar: a “lei da selva”, o “direito” que tem o mais forte de esmagar e expropriar o mais fraco. Essa doutrina resultaria até em conceitos como “darwinismo social”; e os manuais do Neoliberalismo usam explicitamente a expressão “instinto animal” (animal instinct) em referência a uma qualidade, uma competência que devem desenvolver os operadores econômicos. Obviamente, uma tal proposta civilizatória é natimorta.
É sabido, por qualquer pessoa minimamente culta, que todos os sistemas e regimes buscam amparar-se de todas as formas. É o direito divino dos reis, é o Absolutismo, é a segregação, é o genocídio, é o Fascismo, é o Stalinismo: para tudo isso se criam cínicas justificativas econômicas, políticas, sociais, filosóficas, religiosas. Toda pessoa minimamente culta se espanta com a credulidade,  a complacência e a burrice dos povos antigos diante de seus exploradores. É fácil ver a burrice antiga. Mas muitas pessoas minimamente cultas não enxergam a própria burrice diante dos exploradores, dos carrascos de hoje. Ninguém percebe as falácias putrefatas com que o Capitalismo busca justificar-se.
Vamos dar como exemplo a situação de um certo “país tropical, abençoado por Deus e bonito por natureza”.

Esse país nasceu como colônia.  Europeus brigaram pelas riquezas tropicais. Ninguém pensava em “construir uma nação”: o objetivo era pilhar, enricar. Mesmo os nascidos em solo brasileiro, porém filhos de portugueses, renegavam o chão em favor da genealogia: sentiam-se portugueses. Esses “híbridos” eram chamados de mazombos, como lembra Darcy Ribeiro – aliás, um dos últimos grandes pensadores que se insurgiram contra a burrice do brasileiro.

Todos nós conhecemos os “neomazombos” – aqueles brasileiros que vivem de costas para o país e de olho em Miami, New York, Amsterdam, Paris, Tóquio. O Colonialismo passou, mas permanece nos “corações e mentes”.

Há até pouco tempo, o Brasil era explorado num sistema neoimperialista. Mas, tanto fez a Casa-Grande local, com apoio da senzala midiotizada, que nós avançamos para trás: somos hoje explorados num sistema neocolonial. Só as aparências e os falaciosos rótulos institucionais são diferentes.

Sintomático. Quando um organismo entra em falência, ele começa a devorar-se a partir da periferia, para preservar os órgãos essenciais. Na ordem mundial capitalista, a periferia somos nós, o terceiro mundo.

Nos mais recentes “arrancos de cachorro atropelado”, é sobretudo a periferia que tem sofrido com a autofagia terminal do sistema: são golpes de estado para levar ao poder dóceis títeres das potências hegemônicas, sobretudo dos EUA; são pressões ou sabotagens econômicas; são invasões militares, sob ridículos pretextos, como “buscar armas de destruição em massa” ou “restaurar a Democracia”; são permanentes e devastadores bombardeios publicitários, com o fim de manter vivos os inconsistentes mitos do “livre-mercado”, da “meritocracia”, do “Neoliberalismo” – enfim, todos os fictícios pilares sobre os quais se sustenta o Capitalismo.

Ah, e quando a crise é realmente aguda – como em 1929 e 2008 –, as periferias do centro também sofrem: milhões de pessoas enfrentam a miséria e muitas até optam pelo suicídio nos países centrais. Na crise de 1929 houve um estadista – Roosevelt – que colocou a mão visível do Estado para trabalhar em favor da restauração da velha e carcomida ordem. (Por isso, é até hoje visto como “comunista” por muitos norte-americanos.) Quando da crise de 2008, o “Poder Econômico Transnacional” (o “Elefante Oculto” mencionado no ensaio “É a lama, é a lama”) já havia desenvolvido vertiginosa agilidade financeira, e pôde fazer transfusões de trilhões, das periferias para os centros, dos pobres para os ricos, a fim de salvar os “órgãos essenciais” do sistema. Quantias astronômicas de dinheiro público foram desviadas para salvar os principais responsáveis pela crise.

A periferia é dócil. Décadas de doutrinação nos transformaram em escravos ávidos por fazer a vontade do senhor. Claro que os “feitores” e “capitães do mato” trabalham para reprimir os escravos rebeldes, e são devidamente recompensados pelo senhor, que nem se abala de suas luxuosas instalações na Metrópole.

Recapitulando: a Ordem Mundial Capitalista está morrendo. Como todo organismo moribundo, também esse sacrifica o periférico ao central, o acessório ao essencial. Aqui em Pindorama (periferia), legiões de bolsonazistas, analfascistas e anencéfalos cívicos em geral (os “pobres de direita”, a periferia da periferia) prazerosamente oferecem seus pescoços no altar da preservação do sistema, talvez achando que irão com isso conquistar a felicidade no outro mundo.

É a burrice do fim do mundo.

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