quarta-feira, 25 de março de 2020

Lições do vírus



Nelson M. Mendes

Alguém disse que não estamos no mundo a passeio. De fato, nem nossa mente racional fica satisfeita com a ideia de que tudo é um grande acaso, que o ser humano é um acidente da natureza, talvez um experimento que não tem dado muito certo. Como fomos educados dentro das tradições iluministas, positivistas, científicas, como temos todos os motivos históricos e lógicos para rechaçar as alegações e explicações religiosas, tendemos a nos entrincheirar, sim, na tese científica do acidente, do acaso. Mas, como aprendemos também, com essa visão materialista, a sentir pavor da morte, somos levados a buscar desesperadamente algum tipo de apoio quando um vírus ameaça nossa sobrevivência.
É claro que os religiosos fundamentalistas, convictos de que a Terra plana foi criada em seis dias, terão lá sua explicação e solução para o problema. Mas mesmo os fundamentalistas, mesmo os terraplanistas balançam, agora que a ameaça é séria. E até eles, meio a contragosto, aceitam ouvir o que têm a dizer cientistas e pensadores de modo geral.
E é claro que, em momentos de crise, as cabeças funcionam freneticamente. “A necessidade faz o sapo pular.” Todos querem encontrar respostas. Cada qual, naturalmente, segundo suas inclinações, saberes, interesses e disciplinas  em que militam.
Muitos se preocupam não apenas com a saúde física, mas com a saúde psíquica da população. Sabem que o confinamento, o tal “isolamento social”, pode ser um sério problema para aqueles acostumados ao contato humano no trabalho, no bar, no clube, na praia, na igreja. Uma característica bem humana, e que se acentuou nas últimas décadas, é exatamente o gosto por “exterioridades” (aqui em todas as acepções), como disse o sábio Sri Yukteswar. Não nos acostumamos a “olhar para dentro”, a cultivar a flor de lótus a que se referem os textos hindus. Por isso, quando nos faltam os estímulos externos, tudo é aridez e solidão.
Temos a sorte de viver na época da Internet. Já há muitos anos frequentamos chats e redes sociais. Não nos é estranho esse “parece, mas não é”, esse contato que não é exatamente contato. Até um adjetivo que só era encontrado em círculos mais intelectualizados foi recrutado ao vernáculo para classificar o novo ambiente: “virtual”.
Instalada a crise, proibido o contato real, muitos recorrem sofregamente ao contato virtual. E não apenas para trocar afetos: para trocar informações sobre como se defender do inimigo tão pequeno que invisível – mas nada virtual, bem real. E para trabalhar em regime de home-office. E para procurar saber se é tudo fruto de um crime biológico, de um acidente, se é uma vingança da natureza ou um castigo de Deus.
Os filósofos se pronunciam; os médicos; os pequisadores; os sociólogos; os teólogos; os artistas; os escritores. Todos pensando em solucionar o problema e tirar dele as úteis lições.
Mas há também os pastores, preocupados, porque não se arrecada dízimo em templos vazios; e muitos empresários; e membros do governo do Boçal Fascista; e o próprio Boçal Fascista. Todos indignados com a ideia de “parar a economia” por causa de “uma gripezinha”.
Mas a contribuição mais interessante é a daqueles economistas ou  jornalistas a quem Paul Krugman, Nobel de Economia, se refere como “mercenários da plutocracia”; que ganham para mentir em favor do Grande Capital e, por contiguidade, defender o moribundo sistema capitalista.
A posição desses analistas diante da situação mundial deflagrada pelo Coronavírus é claramente a de quem busca saídas... para preservar o Capitalismo. O subtexto, a tese, o tema é: “O que podemos fazer para que tudo volte a ser o que era antes?” No fundo, continuam achando que “there is no alternative”.
“Viver é aprender.” Na verdade, segundo sábios, profetas e filósofos de todas as épocas e todos os lugares, a vida não serve para outra coisa.
O mundo está aprendendo (finalmente? definitivamente?) que o Capitalismo, seja com seus adereços liberais ou neoliberais, é feito de contradições que inevitavelmente o levarão à morte, como previu Marx. O Capitalismo – e o vírus funciona como o contraste injetado na veia do sistema a fim de realçar a patologia semioculta – padece de uma espécie de câncer congênito.
Nós, brasileiros, temos aprendido ainda outra coisa.
Por exemplo: estamos sendo apresentados a um dos significados que o dicionário Caldas Aulete dá ao termo catalisador: “Fig. Diz-se de alguém ou algo que, com a simples presença, mesmo sem ação direta, estimula mudanças ou acelera um processo”.
O brasileiro está aprendendo, antes de tudo, que urna não é latrina; que não podemos nos deixar levar por um sujo e fétido tsunami de fake news e ódio insensato – também provocado por absurdas mentiras.
O Boçal Fascista é o catalisador da iluminação do brasileiro.

3 comentários:

CASA DAS DELÍCIAS CHOCOLATES disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
CASA DAS DELÍCIAS CHOCOLATES disse...

Texto muito esclarecedor como é de costume as palavras de Nelson Mendes.
Peço autorização para compartilhar algumas linhas desse formidável texto.
Ramon Hermann

Nelson M. Mendes disse...

Meu amigo Ramon, compartilhe à vontade. É para isso que escrevo.