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Texto original no site Outras Palavras
Texto editado / NMM:
50
corporações globais enriquecem com o genocídio em Gaza
Francesca
Albanese em
entrevista a Chris Hedges, no Counterpunch |
Tradução: Rôney Rodrigues
Quando Francesca
Albanese concedeu esta entrevista, o relatório que ela preparou sobre as
corporações globais que lucram com o genocídio em Gaza ainda estava embargado.
Nestes dias, o documento finalmente foi divulgado. Chama-se “Da
economia de ocupação para a economia de genocídio” e mostra a
atuação destas corporações em várias áreas.
Albanese
compara Gaza e o cerco de Israel a um campo de concentração, afirmando que é
insustentável, mas também permite ao mundo testemunhar como uma entidade
colonialista ocidental funciona.
Em seu próximo
relatório, Albanese detalhará como a Palestina foi explorada pelo sistema
capitalista global e destacará o papel de certas corporações no genocídio,
inclusive de Estados amigos da Palestina. “Israel sempre explorou a terra, os recursos
e a vida dos palestinos”, afirma ela. “Os lucros até aumentaram em uma economia
de genocídio.”
Albanese,
uma jurista italiana, ocupa o cargo de Relatora Especial da ONU para os
Territórios Palestinos Ocupados desde 2022. Sua função é monitorar e denunciar
“violações de direitos humanos” cometidas por Israel contra palestinos na
Cisjordânia e em Gaza.
Albanese,
que recebe ameaças de morte e enfrenta campanhas de difamação orquestradas por
Israel e seus aliados, busca corajosamente responsabilizar aqueles que apoiam e
sustentam o genocídio. Ela denuncia o que chama de “corrupção moral e política
do mundo” pelo genocídio. Ela está preparando um novo relatório que expõe
bancos, fundos de pensão, empresas de tecnologia e universidades que auxiliam e
incentivam as violações de Israel à lei internacional, aos direitos humanos e
aos crimes de guerra. Ela apontou organizações privadas que são “criminalmente
responsáveis” por ajudar Israel a cometer o “genocídio” em Gaza. Ela também
pediu que altos funcionários da UE sejam acusados de cumplicidade ou crimes de
guerra por apoiarem o genocídio. Ela apoiou a flotilha Madleen, que tentou
romper o bloqueio a Gaza para levar ajuda humanitária, escrevendo que o barco,
interceptado por Israel, carregava não apenas suprimentos, mas uma mensagem de
humanidade.
Francesca
Albanese: A
situação em Gaza se tornou podre, horrível. A fome está reduzindo as pessoas a
um estágio de pré-humanidade. Elas são forçadas, empurradas de volta a um
espaço que antecede a civilização. E isso é estratégico, é intencional por parte
de Israel.
Por que os
Estados europeus e os árabes ainda não enviaram suas marinhas para romper o
bloqueio?
Chris
Hedges: A ação
da flotilha com Greta Thunberg foi um ato de constrangimento, de consciência,
de coragem. E, ainda assim, muitos de nós que denunciamos o genocídio não
conseguimos salvar uma única vida.
Francesca
Albanese: Eu nunca
paro de falar sobre os palestinos. Porque sou de uma geração que viu o
genocídio em Ruanda, na Bósnia e Herzegovina. E ver o genocídio dos
palestinos em câmera lenta me fere irreparavelmente.
Minha única
forma de cura é garantir que as pessoas acordem e percebam que isso tem as
digitais de todos nós.
Porque
quando se vê os lucros que empresas registradas em países ocidentais e outros
estão obtendo com o genocídio dos palestinos… se perde a fé na humanidade de
vez. Ao
denunciar o que Israel está fazendo, estamos contribuindo para garantir que a
Palestina não desapareça dos mapas.
O sacrifício
dos palestinos em Gaza continuará a menos que haja um embargo de armas e que o
bloqueio seja rompido, e isso não pode acontecer sem medidas coercitivas. Israel
é prejudicial aos palestinos, à região, para muitos de nós, para si mesmo e
para seus cidadãos. Isso é algo que os israelenses devem entender.
Certamente não
salvamos vidas, mas contribuímos para mostrar a verdadeira face do apartheid de
Israel.
Chris
Hedges: Eu
cobri a retirada das forças iraquianas do norte do Iraque quando estavam
realizando uma campanha genocida contra os curdos. As forças da Otan
estabeleceram uma zona de exclusão aérea. Sem medidas coercitivas, o genocídio
não será interrompido.
Francesca
Albanese: Absolutamente.
E sabe o que me choca? Quando falo com Estados-membros [da ONU], mesmo os mais
“iluminados”, do Ocidente, eles dizem: “Ah, mas você realmente espera que
boicotemos Israel?”
A um Estado
não cabe boicotar; mas ele tem a obrigação de não cooperar, não comercializar
com Israel, não enviar armas, não comprar armas, não fornecer tecnologia
militar, não adquirir tecnologia militar. Há uma grande indiferença dos
Estados-membros com a violação completa da lei internacional.
Chris
Hedges: Há a
fome: mais de meio milhão de palestinos estão agora à beira da inanição. E não
há água limpa. Nem, claro, suprimentos médicos, ajuda humanitária ou qualquer
coisa. 90% dos palestinos estão vivendo em tendas ou ao ar livre. Onde isso vai
parar?
Israel está
atraindo os palestinos com comida, para amontoar palestinos em complexos vigiados no
sul. E, claro, estão atirando em palestinos que, em desespero, buscam algo para
comer. Eles vão empurrá-los para o Sinai? Você tem alguma ideia?
Francesca
Albanese: Israel estaria
bem com qualquer solução que tire os palestinos da Faixa de Gaza, depois da
Cisjordânia e, finalmente, de Israel.
Mesmo nos
pequenos pedaços que restaram da Palestina histórica – Faixa de Gaza,
Cisjordânia e Jerusalém Oriental – os palestinos não têm direito de existir
como um povo. E 80% da população israelense apoia esse nível de violência
contra os palestinos. A única vitória para este governo é se livrar dos
palestinos.
Eles estão
implorando a todos os países que aceitem os palestinos. E o problema é que
ninguém pode fazer isso, a menos que os palestinos peçam para serem salvos.
Eyal
Weizman, que tem estudado outros genocídios, diz que Israel está seguindo o
caminho de confinar as pessoas em um lugar onde não podem sobreviver por conta
própria. É como um campo de concentração. Gaza não voltará a ser o que era por
causa dos danos ambientais, da contaminação, por tudo o que Gaza é hoje. Mas
isso não importa. Para os palestinos de Gaza, Israel é sua terra natal original. E
os israelenses, mas mais cedo ou mais tarde, teriam que enfrentar isso. Sinto
muito, mas vocês, israelenses, estão vivendo em terras roubadas.
Chris
Hedges: Israel não
está apagando apenas fisicamente a Palestina, pois atacou também suas
universidades, museus, centros culturais. E matou intelectuais, escritores,
poetas, mais de 200 jornalistas, médicos.
Fale sobre
as intensas campanhas que foram movidas contra você pelo AIPAC e pelo lobby
israelense, porque seus relatórios tornam difícil para Israel apagar o que fez
e o que está acontecendo.
Francesca
Albanese: Qualquer
um que ousou denunciar a realidade abominável na Palestina foi acusado de pró-Hamas,
pró-terrorismo, antissemita – a usual ladainha de falsidades.
Então o que
aconteceu comigo não é único. O que acho único é que os ataques continuam a
crescer porque eu não desisto. Quanto mais me ameaçam, mais eu digo: deixe-me
ver como posso fazer melhor meu trabalho.
São
realmente cães latindo: o objetivo é me distrair; e não vão conseguir porque eu
os conheço, porque venho de um lugar assolado pela máfia.
Por que sou
assim? Por que não tenho medo deles? Vivo minha vida de uma forma cheia de
significado. Amo minha família, meus amigos, meus colegas, e não tenho
arrependimentos, porque estou fazendo o que todos deveriam fazer.
Não
conseguem me calar. Não me importo de ser odiada por esse bando de capangas e
charlatães que defendem o genocídio.
Minha âncora
continua sendo a lei internacional. Isso se aplica a todos nós. Então não estou
trazendo meus preceitos ou minha ideologia. O que incomoda os detratores é que uso
a solidez dos fatos e da lei para dizer quem eles são: genocidas ou apoiadores
de um genocídio.
Chris
Hedges: Houve
muitos holocaustos: dos armênios, dos quenianos, etc. Na fome de Bengala em
1943, três milhões de indianos morreram.
E esses
Holocaustos não são reconhecidos por seus perpetradores. Aimé Césaire, em Discurso
sobre o Colonialismo, diz que o Holocausto dos judeus, na Segunda Guerra,
ressoou porque foi contra outros europeus brancos. E, claro, tem sido o Sul
Global, liderado pela África do Sul, que se levantou contra o genocídio. Isso
está reconfigurando a comunidade global?
Francesca
Albanese: Acho
que sim. Não tão rápido quanto o fim do genocídio exigiria, mas está. Nunca
ouvi tantas pessoas falando a linguagem do direito internacional.
Há também
outro aspecto do despertar: nunca antes ouvi tantas pessoas conectando os
pontos entre o passado e o presente, o passado colonial e o presente.
Sinto que há
uma conscientização global sobre a dor e as feridas do colonialismo. Israel está
dando a oportunidade de entender o que é o colonialismo de povoamento.
Mas continuo
dizendo que o genocídio em Gaza não parou porque é lucrativo para
muitos. É um negócio. Há entidades corporativas, inclusive de
Estados amigos da Palestina, que há décadas fazem negócios e lucram com a
economia da ocupação palestina.
Mas os
lucros continuaram e até aumentaram quando a economia da ocupação se
transformou em uma economia de genocídio. Os palestinos forneceram esse campo
de treinamento ilimitado para testar tecnologias, armas, técnicas de vigilância,
que agora estão sendo usadas contra pessoas em todos os lugares, do Sul ao
Norte Global.
Veja o que
está acontecendo nos EUA ou na Alemanha. Somos espionados. Veja o uso de
drones, de biometria. Todas essas coisas foram testadas primeiro nos
palestinos.
O
capitalismo desenfreado, racial e colonial, é prejudicial a todos nós.
Mas vejo uma
revolução em gestação. Muitos judeus não querem que os crimes de Israel sejam
cometidos em seu nome.
O Grupo de
Haia, uma coalizão formada principalmente de países do Sul Global para apoiar
as côrtes
internacionais em decisões sobre o genocídio na Palestina, deveria incluir
muitos outros países – principalmente do Ocidente. Mas aqui estamos: passos de
bebê.
Chris
Hedges: Você
pode falar sobre algumas das corporações globais que estão lucrando com o
genocídio e como estão lucrando?
Francesca
Albanese: Não
poderei dizer muito porque o relatório ainda está embargado. Mas decidi listar
cerca de 50 entidades corporativas, de diversos setores: armas, tecnologia,
construção, turismo, bens e serviços, cadeia de suprimentos.
E há uma
rede de facilitadores como seguradoras, fundos de pensão, fundos de riqueza,
bancos, universidades, instituições de caridade. É um ecossistema sustentando
essa ilegalidade.
O setor
privado historicamente tem sido um condutor do colonialismo de ocupação. Pense
nas Companhias das Índias nos anos 1600, por exemplo.
Mas também
há casos onde empresas ou entidades privadas não foram os condutores, mas os
facilitadores, fornecendo ferramentas, fundos para empreendimentos coloniais
que depois lhes renderam lucros.
Não é novo
que empresas lucrem com genocídios, mas pense no que aconteceu durante o
Holocausto. Os julgamentos dos industriais do Holocausto ajudaram a entender
como empresas fizeram negócios com a tragédia de milhões de judeus.
E é chocante
ver que algumas dessas empresas estão envolvidas no genocídio dos palestinos.
Notifiquei
48 empresas e a resposta foi: “Mas não é nossa culpa, é Israel”. “Não cabe a
você nos dizer o que fazer, são os Estados”. Não, sinto muito. Hoje a ocupação
é ilegal. Israel foi notificado, está sendo investigado direta ou indiretamente
em pelo menos três processos por genocídio, crimes contra humanidade e crimes
de guerra. Vocês não podem continuar business as usual. Por
exemplo, há empresas de turismo que promovem propriedades em assentamentos; ou
agentes imobiliários que vendem “bairros anglófonos agradáveis no coração de
Judeia e Samaria”. Isso é normalização da ocupação por um grupo, e essas
empresas certamente perderão muitos clientes quando eles souberem o que elas
estão fazendo.
Chris
Hedges: O TPI e
a ONU se manifestaram contra o genocídio, mas não têm mecanismos de execução. Como
você vê essas organizações e seu papel no genocídio?
Francesca
Albanese: Mecanismos
até existem. Os Estados-membros da Côrte Internacional de Justiça (CIJ) têm
obrigação de executar as decisões dela. No ano passado, o Conselho de Segurança
da ONU aprovou uma resolução ordenando cessar-fogo em Gaza, mas ela não foi
respeitada. Nunca se faz nada.
E de certa
forma, sim, concordo com você. Israel é visto como parte do colonialismo
ocidental, da confrontação do Ocidente com o resto do mundo, o que é
vergonhoso. Não deveríamos estar ainda nesta ótica racializada.
Somos parte
da mesma família. Não importa sua côr, seu deus ou falta dele. Erguemos
barreiras que precisamos derrubar. Esta é a chance – este genocídio está desencadeando
algo mais.
A guerra
contra o Irã era totalmente previsível, porque Israel semeia guerras na região
há décadas. Bombardear o Irã era o objetivo de longo prazo de vários governos
israelenses, e finalmente aconteceu.
O que Israel
tem a ganhar com a morte de inocentes, iranianos ou israelenses? Por isso digo:
isso precisa parar. Os Estados empurram com a barriga, esperando a UE ou a ONU
intervir. Tudo começa com os principais Estados-membros, e é por isso que mais
uma vez elogio muito o Grupo de Haia.