domingo, 31 de agosto de 2025

Começa o acerto de contas com os golpistas

 

 

Jair Bolsonaro


Editorial no Brasil 247


Texto editado / NMM:

 O julgamento do ex-presidente Jair Bolsonaro e seus aliados pelo Supremo Tribunal Federal marca um ponto de inflexão na história democrática do Brasil.

O processo legal representa não apenas a responsabilização penal de indivíduos, mas um acerto de contas histórico com um movimento golpista.

O evento culminante foram os ataques de 8 de janeiro de 2023, quando uma horda de extremistas bolsonaristas invadiu e vandalizou as sedes dos três Poderes em Brasília.

O principal incentivador do golpe foi o próprio Jair Bolsonaro, que desde pelo menos 2015 semeou dúvidas infundadas sobre a o sistema eleitoral brasileiro. Ainda durante seu mandato, e mesmo após perder as eleições de 2022, o ex-presidente e seus aliados fomentaram alegações de fraude eleitoral, envenenando seus seguidores mais radicais.

No período que se seguiu à eleição, numa articulação nacional, acampamentos foram montados frente a quartéis do Exército, onde manifestantes pediam abertamente por uma "intervenção militar", enquanto ocorria um crescendo de atos de violência, incluindo um atentado frustrado nas proximidades do Aeroporto de Brasília em véspera de Natal.

As investigações revelaram que os ataques de 8 de janeiro não foram eventos espontâneos, mas sim ações planejadas e coordenadas. Mensagens em aplicativos de comunicação já circulavam na primeira semana de 2023 articulando a invasão dos prédios públicos. Em janeiro, torres e linhas de transmissão de energia foram sabotadas.

O ainda presidente Bolsonaro e seu ministro da Defesa chegaram a consultar mais de uma vez comandantes militares para adesão à minuta de golpe de Estado. A operação incluía o assassinato do presidente eleito, Lula, seu vice Geraldo Alckmin e o ministro Alexandre de Moraes. Esses assassinatos estiveram a poucas horas de ocorrer, como se constata por mensagens descobertas entre criminosos pesadamente armados que acompanhavam à espreita cada movimento de Moraes. A intentona previa um evento máximo: Lula não subiria a rampa.

O financiamento dessas ações veio parcialmente de setores do agronegócio, como ficou claro nas delações, revelando a conexão entre interesses econômicos e a tentativa de ruptura democrática.

O papel das Forças Armadas neste contexto é especialmente relevante. Tanto em 1964 quanto em 2023, segmentos militares atribuíram a si mesmos o direito de definir o destino da nação à revelia das escolhas populares. Desta vez, a mentalidade golpista, entretanto, não encontrou eco unânime nas Forças Armadas, e a falta de coesão foi um dos fatores que contribuíram para o fracasso do intento.

As semelhanças com o golpe de 1964 são inegáveis, mas as diferenças são igualmente significativas. Em 1964, os setores empresariais estavam coesos em apoio à ruptura democrática, e os Estados Unidos forneceram apoio inequívoco aos golpistas, chegando a enviar uma esquadra naval ao litoral brasileiro na "Operação Brother Sam". Desta vez, tanto parcelas da burguesia nacional quanto a comunidade internacional rejeitaram o golpe, com os EUA deixando claro que não tolerariam uma ruptura democrática no Brasil.

O julgamento no STF ocorre em um contexto de pressões internacionais sem precedentes. O governo de Donald Trump impôs tarifas punitivas de 50% sobre produtos brasileiros, suspendeu vistos de ministros do Supremo e incluiu Alexandre de Moraes em restrições financeiras da Lei Magnitsky, citando suposta perseguição a Bolsonaro. Essas ações contra a soberania nacional, incentivadas a partir dos EUA por Eduardo Bolsonaro, filho do ex-presidente Jair,  foram repudiadas pelo governo Lula e pela opinião pública brasileira.

O processo contra Bolsonaro e seus aliados – que incluem os ex-ministros Augusto Heleno, Paulo Sérgio Nogueira e Braga Netto, além do ex-comandante da Marinha Almir Garnier Santos e o ex-diretor da Abin Alexandre Ramagem – responde a acusações graves: liderar organização criminosa armada, tentativa de abolição violenta do Estado Democrático de Direito, golpe de Estado, entre outros crimes. As penas somadas podem superar 40 anos de prisão.

A defesa do ex-presidente argumenta que não há provas que liguem Bolsonaro diretamente aos ataques de 8 de janeiro. Alegam ainda que o ex-presidente sempre defendeu a democracia e o Estado de Direito...

O julgamento representa mais do que a responsabilização individual de seus autores: é um teste decisivo para a resistência das instituições democráticas brasileiras.

O acerto de contas com os golpistas é necessário não por vingança, mas por justiça e prevenção pedagógica. A impunidade para crimes graves contra a ordem democrática cria incentivos perversos para que novos intentos golpistas sejam tentados no futuro. Como demonstram experiências internacionais recentes, inclusive o ataque ao Capitólio dos Estados Unidos em 2021, democracias dignas do nome não podem subestimar os riscos representados por movimentos autoritários que se recusam a aceitar resultados eleitorais.

A verdadeira pacificação nacional só será possível com base nas leis e na Justiça.

O Brasil não poderia seguir adiante como se nada tivesse acontecido, varrendo para debaixo do tapete a tentativa violenta de golpe que, após tantas iniciativas e conspirações, irrompeu na praça do povo, em 8 de janeiro.

O julgamento no STF, que o Brasil e o mundo acompanharão a partir desta terça-feira, é um marco nesse longo processo de acerto de contas com o passado recente e de reafirmação do compromisso coletivo do país com a democracia e o Estado de Direito.

Como assevera o jurista Pedro Serrano, membro do Conselho Editorial deste Brasil247, nas condições históricas brasileiras, a vitória da institucionalidade é revolucionária.

sábado, 30 de agosto de 2025

"Vou dormir com você porque quero morrer com você."

  

 

Texto no Opera Mundi


Texto editado / NMM:

Da sala de sua casa no bairro de Al Sheikh Radwan, na Cidade de Gaza, onde passou seus 21 anos de vida, a jornalista palestina Sara Awad conversou com a reportagem de Opera Mundi.

“Lembro que, no primeiro mês da guerra, eu dormia ao lado da minha mãe, chorando. Eu disse a ela: ‘Vou dormir com você porque quero morrer com você’.”

A Cidade de Gaza, ao norte da Faixa, tem sido alvo de ataques cada vez mais intensos desde que o exército israelense anunciou a “fase preliminar” da ofensiva contra a cidade.

“Eu sei que se escolher ficar na minha casa, vou morrer e ninguém saberá de mim. Agora é tentar ir para um lugar mais seguro — embora não exista lugar seguro disponível em Gaza.”

Na manhã de domingo, 24 de agosto de 2025, Sara despertou e encontrou a casa tomada por malas e sacolas: seus pais haviam empacotado os pertences da família.

“Em outubro de 2023, o governo israelense deu a primeira ordem de evacuação. Eu, minha família e outros 30 parentes escolhemos permanecer. Foi uma escolha nossa, mas muito pesada, porque tivemos que decidir entre partir ou enfrentar um número massivo de bombas, a falta de comida, água, internet e eletricidade”, relatou Sara.

Em dezembro de 2023, a família foi obrigada a buscar refúgio no hospital Al-Shifa, na parte oeste da Cidade de Gaza, onde permaneceram por 40 dias.

“Não tínhamos nada. Eu dormi no chão, no corredor do hospital, no meio do inverno congelante, sem nenhum cobertor. Eu dizia a mim mesma: ‘isso também vai passar'”, contou Sara.

A situação se agravou quando o hospital começou a ser alvo de ataques. A família conseguiu deixar o local e voltou para sua casa. Permaneceram lá até julho de 2024, quando uma nova ordem de evacuação os levou novamente para a parte oeste, na casa de um familiar, retornando três semanas depois para seu lar.

Diferente das vezes anteriores, agora a família considera abandonar de vez a casa onde viveram por gerações e buscar refúgio em tendas improvisadas no sul do enclave, diante da ameaça iminente de uma invasão total à Cidade de Gaza.

“A Sara que sou agora é diferente de quem eu era antes da guerra. A tristeza e a exaustão estão estampadas no meu rosto.” Enquanto se prepara para deixar a cidade, Sara Awad relembra seus medos, traumas e a fome desde o começo do genocídio em Gaza.

No dia 7 de outubro de 2023, Sara havia passado a noite estudando para uma prova da faculdade. Mas, às seis da manhã, começou a ouvir o som de foguetes. “Desde aquele dia, eu sabia que minha vida nunca mais seria a mesma”.

Sara, seus pais, seus quatro irmãos e sua irmã ficaram longos períodos isolados do mundo, sem eletricidade ou meios de comunicação. “Outros parentes vieram para nossa casa. Sofremos juntos por meses.”

Sara relata que aspectos comuns da vida humana foram subtraídos da sua rotina: refeições, acesso à água potável, e dinheiro para adquirir os poucos suprimentos ainda disponíveis. Sua experiência revela a fome orquestrada como tática de guerra.

“A fome para mim começou no primeiro dia da guerra. Eu não conseguia colocar nada no estômago. O medo me consumia. Como pude ter tanto medo? A morte parecia uma boa escolha em meio à guerra. Por isso, lamento ter estado tão assustada e instável… A guerra me ensinou a poupar energia e não gastá-la com algo que não posso controlar.”

Para Sara, ainda mais difícil do que lidar com a própria fome é tentar explicá-la para seus irmãos menores: “Como você diz a uma criança de 3 anos que não há leite?”

Cada aspecto da vida cotidiana é dificultado — para não dizer impossibilitado — pela ocupação.Faltam alimentos, água, transporte público, combustível, e para sacar dinheiro, os palestinos pagam taxas de 40%.

Sara comenta que a midia hegemônica aborda genericamente a questão da fome, ignorando que a ela “carrega múltiplos sofrimentos”. E pergunta: “Como as pessoas podem resumir a fome em uma ou duas linhas?”

A fome também afeta a vida profissional de Sara. “De março de 2025 até a semana passada, tivemos os dias de maior sofrimento. Passei três dias sem comer nada, exceto uma sopa de lentilha. Fiquei tonta (…) tive que recusar trabalhos porque estava exausta e não conseguia fazer mais nada. Eu precisava poupar forças para o meu corpo. Naqueles meses, preferi ficar em silêncio. Falar gastava energia demais.”

Sara sonhava em se tornar jornalista. O genocídio a afastou dos estudos, mas ela começou a escrever para a Al Jazeera e outros jornais internacionais.

Desde outubro de 2023, as forças israelenses assassinaram mais de 270 jornalistas. “(Em 2023) eu tinha medo de caminhar ao lado de jornalistas, porque sabia que eles eram alvos. Agora, tenho uma perspectiva diferente. O jornalismo é a minha vida. É o lugar para o qual eu escapo, onde despejo toda a minha energia. Agora tenho uma mensagem e quero transmiti-la para o mundo todo. Tenho histórias não contadas para escrever. Esse se tornou o meu dever.”

A Universidade em que Sara estudava — que também era onde seu pai lecionava — foi destruída por bombardeios israelenses. “Minha universidade foi o lugar onde cresci. Meu pai me levava desde criança para suas aulas, e tenho muitas lembranças daquele lugar.”

Apesar de a Universidade Islâmica de Gaza ainda oferecer aulas online, Sara optou por deixar os estudos e concentrar esforços no jornalismo e em obter uma bolsa de estudos para deixar o enclave.

“Eu sonho com educação e uma vida normal. Até que isso aconteça, como posso acompanhar um programa online? Não tenho um laptop. Como vou ligar meu celular e assistir a uma aula — que nem sequer é ministrada por meus professores, porque a maioria deles morreu?”

Às vésperas de possivelmente ter de deixar sua casa para trás, Sara saiu com sua melhor amiga, Huda, que conheceu na Universidade, para caminhar pela Cidade de Gaza.

“(Eu e Huda) nos despedimos dos nossos lugares favoritos e prometemos manter contato, aconteça o que acontecer. Ela também é escritora, também sonha em viajar, em conseguir uma bolsa no exterior. Se tem uma coisa que aprendi com a guerra é que nada é impossível”, disse Sara, sorrindo.

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Foto de abertura: Arquivo pessoal / Sara Awad

sábado, 16 de agosto de 2025

Como deve o Brasil se defender dos EUA

 

 

Lula e Donald Trump

Lula e Donald Trump (Foto: ABR | Reuters)

 

Texto de Reynaldo Aragon com 31.267 caracteres

Texto editado / NMM com 5.833 caracteres:

O governo Trump, ao decidir classificar cartéis de drogas latino-americanos como organizações terroristas, tenta repetir, em nova escala, o Plan Colombia, dos anos 1990, que serviu para o avanço dos Estados Unidos na região sob a bandeira do combate às drogas.

O objetivo estratégico é provocar incidentes diplomáticos calculados que empurrem governos-alvo para um rompimento unilateral. Essa ruptura forneceria a Washington o pretexto jurídico e político para acionar seu arsenal de medidas coercitivas sem restrições impostas por convenções ou tratados internacionais.  

Essa “doutrina da provocação” combina pressão econômica e campanha para apresentar o país como conivente com o crime organizado transnacional.

A melhor defesa brasileira será não aceitar a provocação, fortalecendo simultaneamente sua autonomia material e informacional.

Tudo começa pela pressão econômica: tarifas injustificadas visam provocar reações que possam ser vistas como “evidência” de que o Brasil não quer cooperar. Em seguida, grupos criminosos são classificados como “terroristas”, o que coloca o Brasil diante de um dilema: aceitar influência de agências norte-americanas na segurança interna ou ser acusado de “proteger terroristas”. Finalmente, ONGs, estudos acadêmicos patrocinados e declarações de parlamentares estrangeiros passam a difundir a narrativa de que o Brasil é leniente com o crime organizado e conivente com redes transnacionais.

Se a provocação for bem-sucedida, o Brasil não apenas enfrentará sanções e restrições, mas será transformado, aos olhos da opinião pública global, no “culpado” de um colapso diplomático cuidadosamente arquitetado por Washington.

O poder coercitivo dos Estados Unidos contra países e empresas opera com alcance extraterritorial, através de dispositivos como o IEEPA, o Kingpin Act, o Magnitsky Act, o Patriot Act e outros instrumentos. 

O Brasil precisa negar o estopim, buscar parcerias alternativas, evitar a tutela externa e construir, nos campos jurídico e jornalístico, uma narrativa que impeça a captura reputacional que transforma prudência soberana em “conivência”. Sem essa preparação, o arsenal de Washington não precisa ser plenamente acionado para produzir o efeito desejado: bastam anúncios e insinuações para que o mercado faça o trabalho.

A escalada é desenhada para induzir o Brasil a reagir de forma emocional e romper canais diplomáticos, entregando aos Estados Unidos a justificativa política e jurídica para manter ou ampliar o cerco.

 O Brasil precisa preparar respostas calibradas, evitando o conflito, e simultaneamente fortalecer sua autonomia econômica, tecnológica e informacional.

A antecipação é a chave para neutralizar a doutrina da provocação. A leitura integrada de certos sinais permite ao Brasil não apenas antecipar movimentos, mas também agir para desmontar narrativas, reforçar parcerias estratégicas e criar redundâncias econômicas e tecnológicas.

Washington precisa construir consenso interno e externo de que essas medidas são legítimas e inevitáveis. Esse trabalho é realizado por think tanks, ONGs, empresas de consultoria, veículos de imprensa, universidades e especialistas independentes.

A operação começa com um enquadramento linguístico. Termos como “paraíso de organizações criminosas transnacionais”, “ponto cego da segurança hemisférica” ou “elo vulnerável no combate ao narcotráfico” são repetidos em relatórios, entrevistas e painéis internacionais, criando uma base semântica que associa automaticamente o país a risco e omissão. Em seguida, entram os “estudos de caso” e “investigações”, muitas vezes produzidos em colaboração com agências ou órgãos dos EUA, mas publicados por entidades que se declaram independentes.

Essa narrativa é amplificada por redes sociais e pela mídia tradicional.

A guerra informacional também se manifesta na diplomacia pública, em discursos na ONU, OEA e outros foros multilaterais. Paralelamente, vazamentos seletivos para a imprensa reforçam a imagem de que o Brasil está no epicentro de um problema que exige resposta internacional.

O objetivo é saturar o espaço informacional. Quando esse estágio é atingido, qualquer resposta brasileira que questione as medidas passa a ser interpretada como prova adicional de resistência a “cooperar” contra um inimigo comum.   

Neutralizar a doutrina da provocação exige mais do que respostas técnicas. A primeira linha de defesa é separar a cooperação legítima de tutela extraterritorial. O Brasil deve evidenciar, com dados e exemplos verificáveis, que colabora no combate ao crime organizado transnacional, mas em termos soberanos.

O Brasil deve apresentar indicadores concretos de combate a redes criminosas, para mostrar que rejeitar a presença militar ou operações diretas dos EUA não significa ser “leniente” com o narcotráfico.

A eficácia dessa contra-argumentação depende de consistência e repetição. Ela deve estar presente em discursos oficiais, entrevistas, documentos técnicos, relatórios internacionais e articulações diplomáticas, de modo a saturar o espaço informacional com uma versão factual e coerente dos fatos. Só assim o Brasil pode impedir que a narrativa de Washington se consolide, justificando medidas coercitivas.

A defesa contra a doutrina da provocação deve ser simultaneamente diplomática, econômica, tecnológica e informacional. É necessário ampliar alianças regionais e com parceiros não alinhados a Washington — no BRICS, na União Africana, na ASEAN e em países do Oriente Médio.

Na frente econômica, a estratégia exige a diversificação de mercados de exportação e importação. É igualmente essencial ampliar o uso de moedas locais e sistemas de pagamentos alternativos ao dólar.

No campo tecnológico, é preciso buscar a parcerias estratégicas, fortalecer a ciberdefesa, incentivar a produção local de semicondutores, gerar mecanismos de redundância para data centers, energia e comunicações, garantindo operação contínua mesmo diante de bloqueios ou restrições impostas por fornecedores estrangeiros.

A dimensão informacional é o elo integrador dessa estratégia. É preciso investir em inteligência estratégica para desativar narrativas adversas antes que se consolidem.

A cruzada antidrogas de 2025 reativa, portanto, com instrumentos mais potentes, o Plan Colombia. O objetivo de Washington é levar o Brasil ao rompimento, abrindo caminho para sanções, tarifas, controles tecnológicos e isolamento reputacional. A resposta brasileira inteligente é não aceitar a provocação. Deve manter a iniciativa diplomática, diversificar parceiros e rotas, separar cooperação legítima de tutela extraterritorial e mostrar que tem capacidade para combater o crime. Evitando-se o rompimento, o projeto dos EUA de intensificar as pressões sobre o Brasil  emperra no custo político e econômico doméstico dos próprios Estados Unidos.

terça-feira, 5 de agosto de 2025

Trump estimula o nascimento do mundo multipolar

 

Presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva, durante declaração à imprensa, na Sala de Coletiva. Rio de Janeiro - RJ - 07/07/2025

Rio de Janeiro - RJ - 07/07/2025 (Foto: Ricardo Stuckert / PR)


Texto de Leonardo Attuch no Brasil 247

Texto editado / NMM:

 

O tarifaço de 50% imposto pelo Trump contra produtos brasileiros marca o fim da hegemonia dos Estados Unidos. Ao tentar isolar e punir parceiros do Sul Global, Trump aproxima economias emergentes, que reduzem a dependência de Washington.

Enquanto a Casa Branca fecha portas para o café brasileiro, por exemplo, a China aprovou 183 novas empresas brasileiras para vender café ao seu mercado. Se os Estados Unidos levantam muros, o gigante asiático constrói pontes.

Pesquisa recente do Instituto Datafolha mostra que a China já é vista como mais confiável do que os EUA no comércio. E 67% dos brasileiros  enxergam em Lula o líder que protege o país de ingerências externas, segundo levantamento do instituto Ponto Map.

Pela primeira vez em muitos anos, milhões de brasileiros discutem os limites da dependência aos Estados Unidos. A reação altiva à decisão de Trump mostra que, quando o Brasil se sente desrespeitado, ressurge uma identidade coletiva em defesa do interesse nacional.

Enquanto isso, fábricas, portos, ferrovias, projetos de energia e até o mercado de consumo interno brasileiro já recebem capital chinês. Ao contrário de Washington, os chineses oferecem cooperação de longo prazo — e os resultados já são palpáveis.

Além disso, a aplicação da Lei Magnitsky contra o ministro Alexandre de Moraes é outro tiro no pé. A busca por alternativas ao sistema dolarizado ganha força sempre que os EUA demonstram disposição de usar sua moeda e seu sistema bancário como armas.

O mundo multipolar é uma realidade em gestação acelerada. Ao tentar deter esse movimento natural da história com tarifas, pressões e sanções políticas, Donald Trump contribuirá para sepultar de vez a ilusão de que os Estados Unidos podem ditar unilateralmente os rumos da economia global.

segunda-feira, 28 de julho de 2025

"America First", cultura por último: uma nação em declínio

 

 

Ilustração: NMM

 

Texto original de Luís Pellegrini no Brasil247

Texto editado / NMM:

No dia 22 último, a atual administração norte-americana anunciou que deixará a UNESCO, uma agência da ONU que trabalha para promover a paz através da cooperação em educação, ciência, cultura, comunicação e informação. É a mais importante organização do mundo no gênero.

Entre os motivos oficiais para a retirada:

• Desalinhamento com a política “America First” – A UNESCO promove uma agenda social e cultural considerada “divisiva” e “woke”, além de não refletir os interesses nacionais dos EUA.

• Admissão da Palestina como Estado-membro da UNESCO, em 2011 – decisão que, segundo eles, alimenta um viés anti-Israel dentro da organização.

• Políticas de diversidade por parte da UNESCO – Programas antirracistas e iniciativas de gênero.

Trump já havia rompido com a UNESCO no seu primeiro governo; e o país voltara para a organização no governo Biden. Ao retirar os EUA de uma das principais instituições internacionais dedicadas à cultura, educação e ciência, Trump mostra desprezo pela construção coletiva do conhecimento e da memória global.

Trump também abandonou o Acordo de Paris para o Clima, no exato momento em que o planeta mais precisa de diálogo e colaboração.

Trump, durante seu primeiro mandato (2017–2021) e no de agora, retirou os Estados Unidos de várias parcerias e acordos de cooperação internacional: OMS (Organização Mundial da Saúde), em plena pandemia da Covid-19; TPP-Transpacific, um importante acordo comercial estratégico com 11 países da Ásia e Oceania; Acordo Nuclear com o Irã; Pacto Global para Migração da ONU; Conselho de Direitos Humanos da ONU. E abandonou vários acordos de Cooperação Científica e Ambiental.

Chegamos agora à fase exacerbada do “America First”, e a pergunta é: trata-se de nacionalismo patológico ou de isolamento cultural?

A nação que sempre se alimentou da imigração, da diversidade e da troca cultural tornou-se, sob Trump e a retórica do “America First”, um bastião de resistência e ojeriza contra tudo que cheira a pluralismo.

Ao incentivar políticas anti-imigratórias, atacar minorias e promover um discurso de “valores americanos tradicionais”, Trump não apenas dividiu a sociedade do seu país, mas empobreceu a identidade nacional.

Trump também promoveu cortes sistemáticos em instituições culturais e científicas, deslegitimou universidades, cientistas e jornalistas – pilares fundamentais de qualquer sociedade democrática e culturalmente vibrante.

Trump afastou os Estados Unidos do convívio simbólico e político com outras nações democráticas, em detrimento do cosmopolitismo construtivo.

Ao promover uma cultura do medo, do ressentimento e da simplificação, Trump enfraqueceu os EUA como potência cultural.

A consequência é clara: os EUA, ao se isolar culturalmente, perdem sua capacidade de liderar simbolicamente – e talvez, no futuro não distante, também econômica e politicamente.

Por tudo isso, Trump faz com que seu país corra o risco de tornar-se irrelevante. E o que talvez seja o mais triste e importante, é que Trump não é uma exceção passageira. Ele expressa um movimento profundo dentro da sociedade americana – um desejo de retorno ao passado, a um mito de pureza e grandeza nacional. Mas, ao tentar se proteger do mundo, os EUA arriscam deixar de pertencer a ele. O isolamento cultural de uma potência é sinal claro de decadência e o primeiro passo para sua irrelevância histórica.


quinta-feira, 24 de julho de 2025

A última tâmara

 

 

 

Imagem: Monirul Islam


Texto original no site A Terra é Redonda

 

Texto editado / NMM:

Por SALEM NASSER

Em um mundo onde o poder fabrica consenso e apaga cadáveres, a história de Asem e sua tâmara é um raio de luz na escuridão.

 

1.

No Brasil, os crimes julgados por um júri popular são aqueles ditos “de sangue”, em que de algum modo se atenta contra a vida.

Um dos maiores advogados que um dia atuaram perante júris populares, Waldir Troncoso Peres, ensinou que a principal função do advogado de defesa era fazer com que os jurados esquecessem que existia um cadáver!

Pois bem, muita gente, muitos Estados tentam nos fazer esquecer que há um genocídio em curso. São o melhor advogado do genocida.

Noam Chomsky e outros falaram de poderes que, sob o manto da aparente liberdade de expressão e de debate, efetivamente são capazes de jogar para a margem toda nota discordante.

Eu já me imaginei sentado à margem desse grande e poderoso rio, lançando nele a minha modesta isca, tentando fisgar homens e mulheres que quisessem ver as coisas sob outras luzes.

2.

Nos dias que correm, podemos acreditar que  as redes sociais substituíram em alguma medida os grandes meios de comunicação.

Direi apenas que as grandes plataformas e seus donos, de modo geral, também trabalharam, e seguem trabalhando, para que o cadáver do genocídio não ocupe o centro da cena.

Grandes jornais e redes de televisão e rádio caminham para a obsolescência, mas continuam a cumprir um papel fundamental na definição da agenda. Se esses grandes veículos quisessem e tivessem coragem, o genocídio na Palestina seria tema de discussão cotidiana em todos os segmentos da população.

É claro que a razão para a falta de coragem desses veículos é a mesma que explica a covardia de elites políticas, econômicas, intelectuais, especificamente no Ocidente e nos lugares do Sul Global que não sabem pensar autonomamente (que é o caso do Brasil).

3.

Um dos lugares em que se pode acompanhar a tragédia cotidiana, e épica, que se abate sobre os palestinos, sobretudo em Gaza, é o canal Electronic Intifada. Recomendo.

Confesso que não tenho estrutura emocional para assistir todos os dias, mas há dois ou três dias, dei de cara com uma história que é ao mesmo tempo um retrato cristalino do sofrimento, uma lição de resistência, de esperança, de humanidade... com um toque de lirismo.

Os apresentadores, Nora Barrows-Freidman e Ali Abunimah, entrevistam mais uma vez Asem Alnabih, um dos contribuidores assíduos do site. Ele atua como porta-voz da prefeitura de Gaza e é engenheiro e doutorando.

Ali nota de imediato: “Asem, cada vez que falamos com você percebo como você está ficando cada vez mais magro.”

Fala-se da situação em Gaza, das dificuldades. Asem Alnabih se diz privilegiado, ele ainda pode fazer uma refeição por dia, ainda tem algum acesso à energia para carregar o celular, acesso a um pouco de água. E mais, sua mulher e seus filhos não estavam em Gaza quando começou a guerra, e continuam fora; não sofrem, portanto, como centenas de milhares de mulheres e crianças em Gaza.

Asem Alnabih mencionara, no último artigo, ter combinado alguma coisa com a esposa. Indagado a respeito, diz que propusera à mulher encontrar um modo de fazer com que os filhos percebessem profundamente, “no fundo da alma”, o que significava a fome por que passavam os palestinos de Gaza.

Perguntam então qual era a história da tâmara. Ele diz algo como: “Gosto muito de tâmaras, tinha uma única tâmara que guardei comigo por seis meses, deixava para comer em algum momento especial. Um dia, vendo o sofrimento pelo qual minha mãe passava e sabendo que ela gosta também de tâmaras, dei para ela. Eu tenho uma irmã caçula, tem 17 anos, e há dois anos só faz estudar para obter seu diploma, sem escola, sem professores, sem eletricidade… eu realmente acredito que ela é um gênio, vai chegar muito longe… Minha mãe, vendo como minha irmã, Nasmah estudava e se esforçava, resolveu dar a tâmara para ela. Nasmah, por sua vez, achou que o melhor seria que seu, e meu, pequeno sobrinho, Mu`min (fiel, crente), de 7 anos, comesse aquela única tâmara”.

Asem termina dizendo: “Eu desejo que um dia a minha irmã Nasmah possa comer tâmaras sem precisar contá-las!”

Perguntado sobre o que se passa no fundo de sua alma, responde: “Eu sinto que vou morrer”.

Gaza: os negociantes do extermínio

  

Arte: Deena So Oteh/ Bloomberg Businessweek

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Texto original no site Outras Palavras

Texto editado / NMM:

 

 50 corporações globais enriquecem com o genocídio em Gaza

 

Francesca Albanese em entrevista a Chris Hedges, no Counterpunch | Tradução: Rôney Rodrigues

 

Quando Francesca Albanese concedeu esta entrevista, o relatório que ela preparou sobre as corporações globais que lucram com o genocídio em Gaza ainda estava embargado. Nestes dias, o documento finalmente foi divulgado. Chama-se “Da economia de ocupação para a economia de genocídio” e mostra a atuação destas corporações em várias áreas.

Albanese compara Gaza e o cerco de Israel a um campo de concentração, afirmando que é insustentável, mas também permite ao mundo testemunhar como uma entidade colonialista ocidental funciona.

Em seu próximo relatório, Albanese detalhará como a Palestina foi explorada pelo sistema capitalista global e destacará o papel de certas corporações no genocídio, inclusive de Estados amigos da Palestina. “Israel sempre explorou a terra, os recursos e a vida dos palestinos”, afirma ela. “Os lucros até aumentaram em uma economia de genocídio.”

Albanese, uma jurista italiana, ocupa o cargo de Relatora Especial da ONU para os Territórios Palestinos Ocupados desde 2022. Sua função é monitorar e denunciar “violações de direitos humanos” cometidas por Israel contra palestinos na Cisjordânia e em Gaza.

Albanese, que recebe ameaças de morte e enfrenta campanhas de difamação orquestradas por Israel e seus aliados, busca corajosamente responsabilizar aqueles que apoiam e sustentam o genocídio. Ela denuncia o que chama de “corrupção moral e política do mundo” pelo genocídio. Ela está preparando um novo relatório que expõe bancos, fundos de pensão, empresas de tecnologia e universidades que auxiliam e incentivam as violações de Israel à lei internacional, aos direitos humanos e aos crimes de guerra. Ela apontou organizações privadas que são “criminalmente responsáveis” por ajudar Israel a cometer o “genocídio” em Gaza. Ela também pediu que altos funcionários da UE sejam acusados de cumplicidade ou crimes de guerra por apoiarem o genocídio. Ela apoiou a flotilha Madleen, que tentou romper o bloqueio a Gaza para levar ajuda humanitária, escrevendo que o barco, interceptado por Israel, carregava não apenas suprimentos, mas uma mensagem de humanidade.

 

Francesca Albanese:  A situação em Gaza se tornou podre, horrível. A fome está reduzindo as pessoas a um estágio de pré-humanidade. Elas são forçadas, empurradas de volta a um espaço que antecede a civilização. E isso é estratégico, é intencional por parte de Israel.

Por que os Estados europeus e os árabes ainda não enviaram suas marinhas para romper o bloqueio?

Chris Hedges: A ação da flotilha com Greta Thunberg foi um ato de constrangimento, de consciência, de coragem. E, ainda assim, muitos de nós que denunciamos o genocídio não conseguimos salvar uma única vida.

Francesca Albanese: Eu nunca paro de falar sobre os palestinos. Porque sou de uma geração que viu o genocídio em Ruanda, na Bósnia e Herzegovina. E ver o genocídio dos palestinos em câmera lenta me fere irreparavelmente.

Minha única forma de cura é garantir que as pessoas acordem e percebam que isso tem as digitais de todos nós.

Porque quando se vê os lucros que empresas registradas em países ocidentais e outros estão obtendo com o genocídio dos palestinos… se perde a fé na humanidade de vez. Ao denunciar o que Israel está fazendo, estamos contribuindo para garantir que a Palestina não desapareça dos mapas.

O sacrifício dos palestinos em Gaza continuará a menos que haja um embargo de armas e que o bloqueio seja rompido, e isso não pode acontecer sem medidas coercitivas. Israel é prejudicial aos palestinos, à região, para muitos de nós, para si mesmo e para seus cidadãos. Isso é algo que os israelenses devem entender.

Certamente não salvamos vidas, mas contribuímos para mostrar a verdadeira face do apartheid de Israel.

Chris Hedges: Eu cobri a retirada das forças iraquianas do norte do Iraque quando estavam realizando uma campanha genocida contra os curdos. As forças da Otan estabeleceram uma zona de exclusão aérea. Sem medidas coercitivas, o genocídio não será interrompido.

Francesca Albanese: Absolutamente. E sabe o que me choca? Quando falo com Estados-membros [da ONU], mesmo os mais “iluminados”, do Ocidente, eles dizem: “Ah, mas você realmente espera que boicotemos Israel?”

A um Estado não cabe boicotar; mas ele tem a obrigação de não cooperar, não comercializar com Israel, não enviar armas, não comprar armas, não fornecer tecnologia militar, não adquirir tecnologia militar. Há uma grande indiferença dos Estados-membros com a violação completa da lei internacional.

Chris Hedges: Há a fome: mais de meio milhão de palestinos estão agora à beira da inanição. E não há água limpa. Nem, claro, suprimentos médicos, ajuda humanitária ou qualquer coisa. 90% dos palestinos estão vivendo em tendas ou ao ar livre. Onde isso vai parar?

Israel está atraindo os palestinos com comida, para amontoar palestinos em complexos vigiados no sul. E, claro, estão atirando em palestinos que, em desespero, buscam algo para comer. Eles vão empurrá-los para o Sinai? Você tem alguma ideia?

Francesca Albanese:  Israel estaria bem com qualquer solução que tire os palestinos da Faixa de Gaza, depois da Cisjordânia e, finalmente, de Israel.

Mesmo nos pequenos pedaços que restaram da Palestina histórica – Faixa de Gaza, Cisjordânia e Jerusalém Oriental – os palestinos não têm direito de existir como um povo. E 80% da população israelense apoia esse nível de violência contra os palestinos. A única vitória para este governo é se livrar dos palestinos.

Eles estão implorando a todos os países que aceitem os palestinos. E o problema é que ninguém pode fazer isso, a menos que os palestinos peçam para serem salvos.

Eyal Weizman, que tem estudado outros genocídios, diz que Israel está seguindo o caminho de confinar as pessoas em um lugar onde não podem sobreviver por conta própria. É como um campo de concentração. Gaza não voltará a ser o que era por causa dos danos ambientais, da contaminação, por tudo o que Gaza é hoje. Mas isso não importa. Para os palestinos de Gaza, Israel é sua terra natal original. E os israelenses, mas mais cedo ou mais tarde, teriam que enfrentar isso. Sinto muito, mas vocês, israelenses, estão vivendo em terras roubadas.

Chris Hedges: Israel não está apagando apenas fisicamente a Palestina, pois atacou também suas universidades, museus, centros culturais. E matou intelectuais, escritores, poetas, mais de 200 jornalistas, médicos.

Fale sobre as intensas campanhas que foram movidas contra você pelo AIPAC e pelo lobby israelense, porque seus relatórios tornam difícil para Israel apagar o que fez e o que está acontecendo.

Francesca Albanese: Qualquer um que ousou denunciar a realidade abominável na Palestina foi acusado de pró-Hamas, pró-terrorismo, antissemita – a usual ladainha de falsidades.

Então o que aconteceu comigo não é único. O que acho único é que os ataques continuam a crescer porque eu não desisto. Quanto mais me ameaçam, mais eu digo: deixe-me ver como posso fazer melhor meu trabalho.

São realmente cães latindo: o objetivo é me distrair; e não vão conseguir porque eu os conheço, porque venho de um lugar assolado pela máfia.

Por que sou assim? Por que não tenho medo deles? Vivo minha vida de uma forma cheia de significado. Amo minha família, meus amigos, meus colegas, e não tenho arrependimentos, porque estou fazendo o que todos deveriam fazer.

Não conseguem me calar. Não me importo de ser odiada por esse bando de capangas e charlatães que defendem o genocídio.

Minha âncora continua sendo a lei internacional. Isso se aplica a todos nós. Então não estou trazendo meus preceitos ou minha ideologia. O que incomoda os detratores é que uso a solidez dos fatos e da lei para dizer quem eles são: genocidas ou apoiadores de um genocídio.

Chris Hedges: Houve muitos holocaustos: dos armênios, dos quenianos, etc. Na fome de Bengala em 1943, três milhões de indianos morreram.

E esses Holocaustos não são reconhecidos por seus perpetradores. Aimé Césaire, em Discurso sobre o Colonialismo, diz que o Holocausto dos judeus, na Segunda Guerra, ressoou porque foi contra outros europeus brancos. E, claro, tem sido o Sul Global, liderado pela África do Sul, que se levantou contra o genocídio. Isso está reconfigurando a comunidade global?

Francesca Albanese: Acho que sim. Não tão rápido quanto o fim do genocídio exigiria, mas está. Nunca ouvi tantas pessoas falando a linguagem do direito internacional.

Há também outro aspecto do despertar: nunca antes ouvi tantas pessoas conectando os pontos entre o passado e o presente, o passado colonial e o presente.

Sinto que há uma conscientização global sobre a dor e as feridas do colonialismo. Israel está dando a oportunidade de entender o que é o colonialismo de povoamento.

Mas continuo dizendo que o genocídio em Gaza não parou porque é lucrativo para muitos. É um negócio. Há entidades corporativas, inclusive de Estados amigos da Palestina, que há décadas fazem negócios e lucram com a economia da ocupação palestina.

Mas os lucros continuaram e até aumentaram quando a economia da ocupação se transformou em uma economia de genocídio. Os palestinos forneceram esse campo de treinamento ilimitado para testar tecnologias, armas, técnicas de vigilância, que agora estão sendo usadas contra pessoas em todos os lugares, do Sul ao Norte Global.

Veja o que está acontecendo nos EUA ou na Alemanha. Somos espionados. Veja o uso de drones, de biometria. Todas essas coisas foram testadas primeiro nos palestinos.

O capitalismo desenfreado, racial e colonial, é prejudicial a todos nós.

Mas vejo uma revolução em gestação. Muitos judeus não querem que os crimes de Israel sejam cometidos em seu nome.

O Grupo de Haia, uma coalizão formada principalmente de países do Sul Global para apoiar as côrtes[1] internacionais em decisões sobre o genocídio na Palestina, deveria incluir muitos outros países – principalmente do Ocidente. Mas aqui estamos: passos de bebê.

Chris Hedges: Você pode falar sobre algumas das corporações globais que estão lucrando com o genocídio e como estão lucrando?

Francesca Albanese: Não poderei dizer muito porque o relatório ainda está embargado. Mas decidi listar cerca de 50 entidades corporativas, de diversos setores: armas, tecnologia, construção, turismo, bens e serviços, cadeia de suprimentos.

E há uma rede de facilitadores como seguradoras, fundos de pensão, fundos de riqueza, bancos, universidades, instituições de caridade. É um ecossistema sustentando essa ilegalidade.

O setor privado historicamente tem sido um condutor do colonialismo de ocupação. Pense nas Companhias das Índias nos anos 1600, por exemplo.

Mas também há casos onde empresas ou entidades privadas não foram os condutores, mas os facilitadores, fornecendo ferramentas, fundos para empreendimentos coloniais que depois lhes renderam lucros.

Não é novo que empresas lucrem com genocídios, mas pense no que aconteceu durante o Holocausto. Os julgamentos dos industriais do Holocausto ajudaram a entender como empresas fizeram negócios com a tragédia de milhões de judeus.

E é chocante ver que algumas dessas empresas estão envolvidas no genocídio dos palestinos.

Notifiquei 48 empresas e a resposta foi: “Mas não é nossa culpa, é Israel”. “Não cabe a você nos dizer o que fazer, são os Estados”. Não, sinto muito. Hoje a ocupação é ilegal. Israel foi notificado, está sendo investigado direta ou indiretamente em pelo menos três processos por genocídio, crimes contra humanidade e crimes de guerra. Vocês não podem continuar business as usual. Por exemplo, há empresas de turismo que promovem propriedades em assentamentos; ou agentes imobiliários que vendem “bairros anglófonos agradáveis no coração de Judeia e Samaria”. Isso é normalização da ocupação por um grupo, e essas empresas certamente perderão muitos clientes quando eles souberem o que elas estão fazendo.

Chris Hedges: O TPI e a ONU se manifestaram contra o genocídio, mas não têm mecanismos de execução. Como você vê essas organizações e seu papel no genocídio?

Francesca Albanese: Mecanismos até existem. Os Estados-membros da Côrte Internacional de Justiça (CIJ) têm obrigação de executar as decisões dela. No ano passado, o Conselho de Segurança da ONU aprovou uma resolução ordenando cessar-fogo em Gaza, mas ela não foi respeitada. Nunca se faz nada.

E de certa forma, sim, concordo com você. Israel é visto como parte do colonialismo ocidental, da confrontação do Ocidente com o resto do mundo, o que é vergonhoso. Não deveríamos estar ainda nesta ótica racializada.

Somos parte da mesma família. Não importa sua côr, seu deus ou falta dele. Erguemos barreiras que precisamos derrubar. Esta é a chance – este genocídio está desencadeando algo mais.

A guerra contra o Irã era totalmente previsível, porque Israel semeia guerras na região há décadas. Bombardear o Irã era o objetivo de longo prazo de vários governos israelenses, e finalmente aconteceu.

O que Israel tem a ganhar com a morte de inocentes, iranianos ou israelenses? Por isso digo: isso precisa parar. Os Estados empurram com a barriga, esperando a UE ou a ONU intervir. Tudo começa com os principais Estados-membros, e é por isso que mais uma vez elogio muito o Grupo de Haia.



[1] O editor resgata os acentos diferenciais de timbre, banidos da nossa ortografia.