quinta-feira, 24 de julho de 2025

A última tâmara

 

 

 

Imagem: Monirul Islam


Texto original no site A Terra é Redonda

 

Texto editado / NMM:

Por SALEM NASSER

Em um mundo onde o poder fabrica consenso e apaga cadáveres, a história de Asem e sua tâmara é um raio de luz na escuridão.

 

1.

No Brasil, os crimes julgados por um júri popular são aqueles ditos “de sangue”, em que de algum modo se atenta contra a vida.

Um dos maiores advogados que um dia atuaram perante júris populares, Waldir Troncoso Peres, ensinou que a principal função do advogado de defesa era fazer com que os jurados esquecessem que existia um cadáver!

Pois bem, muita gente, muitos Estados tentam nos fazer esquecer que há um genocídio em curso. São o melhor advogado do genocida.

Noam Chomsky e outros falaram de poderes que, sob o manto da aparente liberdade de expressão e de debate, efetivamente são capazes de jogar para a margem toda nota discordante.

Eu já me imaginei sentado à margem desse grande e poderoso rio, lançando nele a minha modesta isca, tentando fisgar homens e mulheres que quisessem ver as coisas sob outras luzes.

2.

Nos dias que correm, podemos acreditar que  as redes sociais substituíram em alguma medida os grandes meios de comunicação.

Direi apenas que as grandes plataformas e seus donos, de modo geral, também trabalharam, e seguem trabalhando, para que o cadáver do genocídio não ocupe o centro da cena.

Grandes jornais e redes de televisão e rádio caminham para a obsolescência, mas continuam a cumprir um papel fundamental na definição da agenda. Se esses grandes veículos quisessem e tivessem coragem, o genocídio na Palestina seria tema de discussão cotidiana em todos os segmentos da população.

É claro que a razão para a falta de coragem desses veículos é a mesma que explica a covardia de elites políticas, econômicas, intelectuais, especificamente no Ocidente e nos lugares do Sul Global que não sabem pensar autonomamente (que é o caso do Brasil).

3.

Um dos lugares em que se pode acompanhar a tragédia cotidiana, e épica, que se abate sobre os palestinos, sobretudo em Gaza, é o canal Electronic Intifada. Recomendo.

Confesso que não tenho estrutura emocional para assistir todos os dias, mas há dois ou três dias, dei de cara com uma história que é ao mesmo tempo um retrato cristalino do sofrimento, uma lição de resistência, de esperança, de humanidade... com um toque de lirismo.

Os apresentadores, Nora Barrows-Freidman e Ali Abunimah, entrevistam mais uma vez Asem Alnabih, um dos contribuidores assíduos do site. Ele atua como porta-voz da prefeitura de Gaza e é engenheiro e doutorando.

Ali nota de imediato: “Asem, cada vez que falamos com você percebo como você está ficando cada vez mais magro.”

Fala-se da situação em Gaza, das dificuldades. Asem Alnabih se diz privilegiado, ele ainda pode fazer uma refeição por dia, ainda tem algum acesso à energia para carregar o celular, acesso a um pouco de água. E mais, sua mulher e seus filhos não estavam em Gaza quando começou a guerra, e continuam fora; não sofrem, portanto, como centenas de milhares de mulheres e crianças em Gaza.

Asem Alnabih mencionara, no último artigo, ter combinado alguma coisa com a esposa. Indagado a respeito, diz que propusera à mulher encontrar um modo de fazer com que os filhos percebessem profundamente, “no fundo da alma”, o que significava a fome por que passavam os palestinos de Gaza.

Perguntam então qual era a história da tâmara. Ele diz algo como: “Gosto muito de tâmaras, tinha uma única tâmara que guardei comigo por seis meses, deixava para comer em algum momento especial. Um dia, vendo o sofrimento pelo qual minha mãe passava e sabendo que ela gosta também de tâmaras, dei para ela. Eu tenho uma irmã caçula, tem 17 anos, e há dois anos só faz estudar para obter seu diploma, sem escola, sem professores, sem eletricidade… eu realmente acredito que ela é um gênio, vai chegar muito longe… Minha mãe, vendo como minha irmã, Nasmah estudava e se esforçava, resolveu dar a tâmara para ela. Nasmah, por sua vez, achou que o melhor seria que seu, e meu, pequeno sobrinho, Mu`min (fiel, crente), de 7 anos, comesse aquela única tâmara”.

Asem termina dizendo: “Eu desejo que um dia a minha irmã Nasmah possa comer tâmaras sem precisar contá-las!”

Perguntado sobre o que se passa no fundo de sua alma, responde: “Eu sinto que vou morrer”.

Gaza: os negociantes do extermínio

  

Arte: Deena So Oteh/ Bloomberg Businessweek

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Texto original no site Outras Palavras

Texto editado / NMM:

 

 50 corporações globais enriquecem com o genocídio em Gaza

 

Francesca Albanese em entrevista a Chris Hedges, no Counterpunch | Tradução: Rôney Rodrigues

 

Quando Francesca Albanese concedeu esta entrevista, o relatório que ela preparou sobre as corporações globais que lucram com o genocídio em Gaza ainda estava embargado. Nestes dias, o documento finalmente foi divulgado. Chama-se “Da economia de ocupação para a economia de genocídio” e mostra a atuação destas corporações em várias áreas.

Albanese compara Gaza e o cerco de Israel a um campo de concentração, afirmando que é insustentável, mas também permite ao mundo testemunhar como uma entidade colonialista ocidental funciona.

Em seu próximo relatório, Albanese detalhará como a Palestina foi explorada pelo sistema capitalista global e destacará o papel de certas corporações no genocídio, inclusive de Estados amigos da Palestina. “Israel sempre explorou a terra, os recursos e a vida dos palestinos”, afirma ela. “Os lucros até aumentaram em uma economia de genocídio.”

Albanese, uma jurista italiana, ocupa o cargo de Relatora Especial da ONU para os Territórios Palestinos Ocupados desde 2022. Sua função é monitorar e denunciar “violações de direitos humanos” cometidas por Israel contra palestinos na Cisjordânia e em Gaza.

Albanese, que recebe ameaças de morte e enfrenta campanhas de difamação orquestradas por Israel e seus aliados, busca corajosamente responsabilizar aqueles que apoiam e sustentam o genocídio. Ela denuncia o que chama de “corrupção moral e política do mundo” pelo genocídio. Ela está preparando um novo relatório que expõe bancos, fundos de pensão, empresas de tecnologia e universidades que auxiliam e incentivam as violações de Israel à lei internacional, aos direitos humanos e aos crimes de guerra. Ela apontou organizações privadas que são “criminalmente responsáveis” por ajudar Israel a cometer o “genocídio” em Gaza. Ela também pediu que altos funcionários da UE sejam acusados de cumplicidade ou crimes de guerra por apoiarem o genocídio. Ela apoiou a flotilha Madleen, que tentou romper o bloqueio a Gaza para levar ajuda humanitária, escrevendo que o barco, interceptado por Israel, carregava não apenas suprimentos, mas uma mensagem de humanidade.

 

Francesca Albanese:  A situação em Gaza se tornou podre, horrível. A fome está reduzindo as pessoas a um estágio de pré-humanidade. Elas são forçadas, empurradas de volta a um espaço que antecede a civilização. E isso é estratégico, é intencional por parte de Israel.

Por que os Estados europeus e os árabes ainda não enviaram suas marinhas para romper o bloqueio?

Chris Hedges: A ação da flotilha com Greta Thunberg foi um ato de constrangimento, de consciência, de coragem. E, ainda assim, muitos de nós que denunciamos o genocídio não conseguimos salvar uma única vida.

Francesca Albanese: Eu nunca paro de falar sobre os palestinos. Porque sou de uma geração que viu o genocídio em Ruanda, na Bósnia e Herzegovina. E ver o genocídio dos palestinos em câmera lenta me fere irreparavelmente.

Minha única forma de cura é garantir que as pessoas acordem e percebam que isso tem as digitais de todos nós.

Porque quando se vê os lucros que empresas registradas em países ocidentais e outros estão obtendo com o genocídio dos palestinos… se perde a fé na humanidade de vez. Ao denunciar o que Israel está fazendo, estamos contribuindo para garantir que a Palestina não desapareça dos mapas.

O sacrifício dos palestinos em Gaza continuará a menos que haja um embargo de armas e que o bloqueio seja rompido, e isso não pode acontecer sem medidas coercitivas. Israel é prejudicial aos palestinos, à região, para muitos de nós, para si mesmo e para seus cidadãos. Isso é algo que os israelenses devem entender.

Certamente não salvamos vidas, mas contribuímos para mostrar a verdadeira face do apartheid de Israel.

Chris Hedges: Eu cobri a retirada das forças iraquianas do norte do Iraque quando estavam realizando uma campanha genocida contra os curdos. As forças da Otan estabeleceram uma zona de exclusão aérea. Sem medidas coercitivas, o genocídio não será interrompido.

Francesca Albanese: Absolutamente. E sabe o que me choca? Quando falo com Estados-membros [da ONU], mesmo os mais “iluminados”, do Ocidente, eles dizem: “Ah, mas você realmente espera que boicotemos Israel?”

A um Estado não cabe boicotar; mas ele tem a obrigação de não cooperar, não comercializar com Israel, não enviar armas, não comprar armas, não fornecer tecnologia militar, não adquirir tecnologia militar. Há uma grande indiferença dos Estados-membros com a violação completa da lei internacional.

Chris Hedges: Há a fome: mais de meio milhão de palestinos estão agora à beira da inanição. E não há água limpa. Nem, claro, suprimentos médicos, ajuda humanitária ou qualquer coisa. 90% dos palestinos estão vivendo em tendas ou ao ar livre. Onde isso vai parar?

Israel está atraindo os palestinos com comida, para amontoar palestinos em complexos vigiados no sul. E, claro, estão atirando em palestinos que, em desespero, buscam algo para comer. Eles vão empurrá-los para o Sinai? Você tem alguma ideia?

Francesca Albanese:  Israel estaria bem com qualquer solução que tire os palestinos da Faixa de Gaza, depois da Cisjordânia e, finalmente, de Israel.

Mesmo nos pequenos pedaços que restaram da Palestina histórica – Faixa de Gaza, Cisjordânia e Jerusalém Oriental – os palestinos não têm direito de existir como um povo. E 80% da população israelense apoia esse nível de violência contra os palestinos. A única vitória para este governo é se livrar dos palestinos.

Eles estão implorando a todos os países que aceitem os palestinos. E o problema é que ninguém pode fazer isso, a menos que os palestinos peçam para serem salvos.

Eyal Weizman, que tem estudado outros genocídios, diz que Israel está seguindo o caminho de confinar as pessoas em um lugar onde não podem sobreviver por conta própria. É como um campo de concentração. Gaza não voltará a ser o que era por causa dos danos ambientais, da contaminação, por tudo o que Gaza é hoje. Mas isso não importa. Para os palestinos de Gaza, Israel é sua terra natal original. E os israelenses, mas mais cedo ou mais tarde, teriam que enfrentar isso. Sinto muito, mas vocês, israelenses, estão vivendo em terras roubadas.

Chris Hedges: Israel não está apagando apenas fisicamente a Palestina, pois atacou também suas universidades, museus, centros culturais. E matou intelectuais, escritores, poetas, mais de 200 jornalistas, médicos.

Fale sobre as intensas campanhas que foram movidas contra você pelo AIPAC e pelo lobby israelense, porque seus relatórios tornam difícil para Israel apagar o que fez e o que está acontecendo.

Francesca Albanese: Qualquer um que ousou denunciar a realidade abominável na Palestina foi acusado de pró-Hamas, pró-terrorismo, antissemita – a usual ladainha de falsidades.

Então o que aconteceu comigo não é único. O que acho único é que os ataques continuam a crescer porque eu não desisto. Quanto mais me ameaçam, mais eu digo: deixe-me ver como posso fazer melhor meu trabalho.

São realmente cães latindo: o objetivo é me distrair; e não vão conseguir porque eu os conheço, porque venho de um lugar assolado pela máfia.

Por que sou assim? Por que não tenho medo deles? Vivo minha vida de uma forma cheia de significado. Amo minha família, meus amigos, meus colegas, e não tenho arrependimentos, porque estou fazendo o que todos deveriam fazer.

Não conseguem me calar. Não me importo de ser odiada por esse bando de capangas e charlatães que defendem o genocídio.

Minha âncora continua sendo a lei internacional. Isso se aplica a todos nós. Então não estou trazendo meus preceitos ou minha ideologia. O que incomoda os detratores é que uso a solidez dos fatos e da lei para dizer quem eles são: genocidas ou apoiadores de um genocídio.

Chris Hedges: Houve muitos holocaustos: dos armênios, dos quenianos, etc. Na fome de Bengala em 1943, três milhões de indianos morreram.

E esses Holocaustos não são reconhecidos por seus perpetradores. Aimé Césaire, em Discurso sobre o Colonialismo, diz que o Holocausto dos judeus, na Segunda Guerra, ressoou porque foi contra outros europeus brancos. E, claro, tem sido o Sul Global, liderado pela África do Sul, que se levantou contra o genocídio. Isso está reconfigurando a comunidade global?

Francesca Albanese: Acho que sim. Não tão rápido quanto o fim do genocídio exigiria, mas está. Nunca ouvi tantas pessoas falando a linguagem do direito internacional.

Há também outro aspecto do despertar: nunca antes ouvi tantas pessoas conectando os pontos entre o passado e o presente, o passado colonial e o presente.

Sinto que há uma conscientização global sobre a dor e as feridas do colonialismo. Israel está dando a oportunidade de entender o que é o colonialismo de povoamento.

Mas continuo dizendo que o genocídio em Gaza não parou porque é lucrativo para muitos. É um negócio. Há entidades corporativas, inclusive de Estados amigos da Palestina, que há décadas fazem negócios e lucram com a economia da ocupação palestina.

Mas os lucros continuaram e até aumentaram quando a economia da ocupação se transformou em uma economia de genocídio. Os palestinos forneceram esse campo de treinamento ilimitado para testar tecnologias, armas, técnicas de vigilância, que agora estão sendo usadas contra pessoas em todos os lugares, do Sul ao Norte Global.

Veja o que está acontecendo nos EUA ou na Alemanha. Somos espionados. Veja o uso de drones, de biometria. Todas essas coisas foram testadas primeiro nos palestinos.

O capitalismo desenfreado, racial e colonial, é prejudicial a todos nós.

Mas vejo uma revolução em gestação. Muitos judeus não querem que os crimes de Israel sejam cometidos em seu nome.

O Grupo de Haia, uma coalizão formada principalmente de países do Sul Global para apoiar as côrtes[1] internacionais em decisões sobre o genocídio na Palestina, deveria incluir muitos outros países – principalmente do Ocidente. Mas aqui estamos: passos de bebê.

Chris Hedges: Você pode falar sobre algumas das corporações globais que estão lucrando com o genocídio e como estão lucrando?

Francesca Albanese: Não poderei dizer muito porque o relatório ainda está embargado. Mas decidi listar cerca de 50 entidades corporativas, de diversos setores: armas, tecnologia, construção, turismo, bens e serviços, cadeia de suprimentos.

E há uma rede de facilitadores como seguradoras, fundos de pensão, fundos de riqueza, bancos, universidades, instituições de caridade. É um ecossistema sustentando essa ilegalidade.

O setor privado historicamente tem sido um condutor do colonialismo de ocupação. Pense nas Companhias das Índias nos anos 1600, por exemplo.

Mas também há casos onde empresas ou entidades privadas não foram os condutores, mas os facilitadores, fornecendo ferramentas, fundos para empreendimentos coloniais que depois lhes renderam lucros.

Não é novo que empresas lucrem com genocídios, mas pense no que aconteceu durante o Holocausto. Os julgamentos dos industriais do Holocausto ajudaram a entender como empresas fizeram negócios com a tragédia de milhões de judeus.

E é chocante ver que algumas dessas empresas estão envolvidas no genocídio dos palestinos.

Notifiquei 48 empresas e a resposta foi: “Mas não é nossa culpa, é Israel”. “Não cabe a você nos dizer o que fazer, são os Estados”. Não, sinto muito. Hoje a ocupação é ilegal. Israel foi notificado, está sendo investigado direta ou indiretamente em pelo menos três processos por genocídio, crimes contra humanidade e crimes de guerra. Vocês não podem continuar business as usual. Por exemplo, há empresas de turismo que promovem propriedades em assentamentos; ou agentes imobiliários que vendem “bairros anglófonos agradáveis no coração de Judeia e Samaria”. Isso é normalização da ocupação por um grupo, e essas empresas certamente perderão muitos clientes quando eles souberem o que elas estão fazendo.

Chris Hedges: O TPI e a ONU se manifestaram contra o genocídio, mas não têm mecanismos de execução. Como você vê essas organizações e seu papel no genocídio?

Francesca Albanese: Mecanismos até existem. Os Estados-membros da Côrte Internacional de Justiça (CIJ) têm obrigação de executar as decisões dela. No ano passado, o Conselho de Segurança da ONU aprovou uma resolução ordenando cessar-fogo em Gaza, mas ela não foi respeitada. Nunca se faz nada.

E de certa forma, sim, concordo com você. Israel é visto como parte do colonialismo ocidental, da confrontação do Ocidente com o resto do mundo, o que é vergonhoso. Não deveríamos estar ainda nesta ótica racializada.

Somos parte da mesma família. Não importa sua côr, seu deus ou falta dele. Erguemos barreiras que precisamos derrubar. Esta é a chance – este genocídio está desencadeando algo mais.

A guerra contra o Irã era totalmente previsível, porque Israel semeia guerras na região há décadas. Bombardear o Irã era o objetivo de longo prazo de vários governos israelenses, e finalmente aconteceu.

O que Israel tem a ganhar com a morte de inocentes, iranianos ou israelenses? Por isso digo: isso precisa parar. Os Estados empurram com a barriga, esperando a UE ou a ONU intervir. Tudo começa com os principais Estados-membros, e é por isso que mais uma vez elogio muito o Grupo de Haia.



[1] O editor resgata os acentos diferenciais de timbre, banidos da nossa ortografia.

segunda-feira, 21 de julho de 2025

"Médicos que chegam de Gaza contam que nunca viram algo tão cruel", diz diretora do MSF

 

 

Foto capturada no site VATICAN NEWS

 

Texto original na página Brasil de Fato em 16/07/2025

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  Texto editado /NMM:

situação em Gaza não tem precedentes, mesmo para uma organização humanitária com mais de 50 anos de atuação em zonas de conflito extremo. A diretora-executiva da Médicos Sem Fronteiras (MSF), Renata Reis, revela que os profissionais que atuam na região relatam “nunca ter visto algo tão cruel como o que hoje acontece em Gaza”.

Segundo ela, a população palestina vive sob bombardeios incessantes, enquanto tenta sobreviver em meio à escassez total de alimentos e medicamentos. 1.9 milhão de pessoas foram forçadas a se deslocar das suas casas, e estão “vivendo em tendas, em situações subumanas”.

Segundo Renata Reis, o trabalho dos mais de mil profissionais da MSF em Gaza é limitado pela destruição da infraestrutura e pelo bloqueio israelense. Acrescenta: “É absolutamente inaceitável que no momento de distribuição de comida as pessoas sejam alvejadas.”

Diz ainda que a organização já perdeu 12 funcionários, o último deles “na fila para buscar um saco de farinha para sua família”, e que a fome está sendo usada como arma de guerra.

Para a dirigente do MSF, o cenário é de “tragédia humanitária completa, de limpeza étnica”, e exige uma resposta internacional urgente.

domingo, 20 de julho de 2025

A turma (ou turba) da bufunfa

 


 

Texto original de Paulo Nogueira Batista Jr., em 18/07/2025

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Texto editado / NMM:

Não sei se vocês conhecem esse conceito econômico, talvez a única contribuição que fiz à literatura econômica.

A turma da bufunfa é um poderoso agrupamento de banqueiros, financistas, rentistas e empresários não-financeiros de grande porte, acolitados por economistas e jornalistas serviçais. É um grupo muito influente, que se dedica a acumular dinheiro, custe o que custar, ignorando na cara dura preocupações sociais e nacionais.

Nem são propriamente brasileiros, mas “cidadãos do mundo” no pior sentido da expressão.

São às vezes referidos como “Faria Lima” [rua que é centro financeiro de São Paulo e do Brasil]; mas essa designação é muito restrita para um fenômeno que tem alcance internacional. São outras vezes chamados de “mercado”; mas esse termo é muito neutro e não indica tratar-se de uma confraria sinistra e atuante.

Formam uma plutocracia nociva, capaz de desestabilizar países inteiros, até países grandes. Deixados soltos, são capazes de danificar o planeta, como estamos vendo no século 21, com a degradação ambiental, a pobreza, a desigualdade social e a instabilidade recorrente das economias financeirizadas do Ocidente.

Um leitor me sugeriu, certa vez, dar mais precisão à teoria e falar em “turba da bufunfa”; em vez de “turma”, que é uma palavra simpática.

A ala tupiniquim dessa turba é, além disso, estritamente subserviente aos Estados Unidos, e não tem nem vestígios de imaginação e criatividade.

Devo ressalvar que há importantes exceções a isso no meio financeiro ou com passagem por ele. Mas são casos isolados.

Um destacado integrante da turba da bufunfa

Um banqueiro ou especulador de grande porte olha os pobres mortais de cima para baixo.

Não lhe faltam ocasiões para soltar o verbo, não raro em mau português, salpicado desnecessariamente de termos em inglês. A própria linguagem é colonizada. O banqueiro pode até parecer um idiota. Mas sabe ganhar dinheiro, legal ou ilegalmente, geralmente, recorrendo a tráfico de influência, corrupção e evasão fiscal.

Dou um exemplo: Luís Stuhlberger é um destacado e respeitado integrante da turba da bufunfa local.

As suas opiniões, publicadas com destaque pelo jornal Valor (30 de maio, p. C3), contêm tudo que há de pior na turba da bufunfa.

Segundo ele, o aumento do Imposto sobre Operações Financeiras (IOF) sobre diversos itens e, em especial, sobre remessas de recursos para o exterior, foi um sinal de “perigo” e “assustador”.

A tributação das remessas para fora do país e outras medidas que penalizam a alta renda permitem, declarou ele, continuar subsidiando as classes menos privilegiadas.

O que pessoas como Stuhlberger querem é manter a liberdade para os movimentos de capital, uma das muitas heranças desastradas do governo Fernando Henrique Cardoso.

Segundo Stuhlberger, os controles de capitais deram errado em toda parte. Falso. Ao contrário, há casos notáveis de sucesso na aplicação de restrições à entrada e saída de capitais. Pode-se destacar Índia e China. [A excessiva liberdade financeira provocou crises gravíssimas, como a de 1929 e a de 2008.]

A China, um caso de sucesso estrondoso, mantém até hoje controles rigorosos sobre a movimentação transfronteiriça de capital. E não teria alcançado o que alcançou se tivesse aceitado o receituário neoliberal que vitimou e vitima até hoje diversas economias latino-americanas.

A Argentina é o exemplo mais espetacular, mas o Brasil também sofre desse problema. Liberdade para os capitais privados implica imobilizar, pelo menos em parte, as políticas monetárias, cambial e fiscal.

Economistas serviçais

As opiniões de um banqueiro ou financista, sobre questões macroeconômicas e macropolíticas, são acatadas na mídia, por burrice ou por interesses escusos, como perfeitamente válidas.

No entanto, nem sempre o capitalista financeiro quer se expor em público. Recorre então aos economistas do mercado. Contrata a peso de ouro, um ex-presidente ou ex-diretor do Banco Central, por exemplo, que passa a servir de porta-voz dos seus interesses, em público e nos bastidores.

Como sempre digo, a longa dedicação ao mercado parece provocar progressivo estreitamento do horizonte intelectual. O sujeito começa como economista promissor e termina como soldadinho de chumbo da turba da bufunfa.

É o que acontece com os que passam pela porta giratória do Banco Central.

Por antever possiblidades lucrativas, diversos economistas se dispõem a passar uma temporada no BC ou em outro setor da área econômica do governo, mesmo ganhando por um tempo salários relativamente baixos. Não importa. Terão futuro promissor, desde que dancem conforme a música enquanto lá estão. Depois, apoiados pela mídia tradicional, consolidam a “credibilidade” conquistada com subserviência. E, mais importante, embolsam a bufunfa.

quarta-feira, 16 de julho de 2025

A guerra não é de Trump contra Lula; é dos EUA contra o Brasil

 



Donald Trump e Lula

Donald Trump e Lula (Foto: Reuters | ABR)

 


Texto original de Leonardo Attuch, em 16 de julho de 2025, no Brasil 247

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Texto editado / NMM:

A abertura de uma investigação comercial contra o Brasil pelo presidente Donald Trump é um ataque direto do império norte-americano ao Brasil, com motivações econômicas e geopolíticas.

A decisão do USTR, o Departamento de Comércio dos Estados Unidos, parte de premissas escancaradamente falsas. O documento oficial acusa o Brasil de práticas desleais em comércio digital, serviços financeiros, meio ambiente e outras áreas. Mas o objetivo real é claro: frear o avanço do Brasil como potência emergente, retaliar sua atuação soberana no cenário global e, acima de tudo, tentar conter o crescimento do BRICS como alternativa à ordem unipolar liderada por Washington.

O verdadeiro incômodo de Trump e dos interesses financeiros que ele representa é o fortalecimento do Brasil enquanto país soberano. 

O avanço do Pix como sistema de pagamento digital gratuito, por exemplo, ameaça gigantes como Visa e Mastercard no mercado de pagamentos brasileiro. O protagonismo do Brasil no BRICS, ao lado de China, Rússia, Índia e África do Sul e dos novos países membros e parceiros do bloco, é visto como uma afronta à hegemonia dos Estados Unidos sobre o comércio global, o sistema financeiro internacional e a governança mundial.

A retórica dos Estados Unidos tenta mascarar seus interesses acusando o Brasil de práticas comerciais desleais, corrupção ou desmatamento.

Diante dessa agressão, o caminho é o da defesa da soberania nacional. O ataque não é ao governo Lula ou à esquerda, é ao Brasil. Por isso, é essencial construir consensos entre o setor público, o setor privado, trabalhadores, empresários, mídia e sociedade civil.

O Brasil tem o direito de escolher seu próprio modelo de desenvolvimento, suas próprias políticas públicas e seus próprios aliados internacionais.

O Brasil já viveu momentos difíceis na história e sempre saiu mais forte quando prevaleceu a unidade nacional. Com uma resposta firme, apoio popular e articulação internacional, o Brasil pode transformar a tentativa de intimidação em uma oportunidade histórica de fortalecer sua soberania e de consolidar seu papel como potência do Sul Global.

sexta-feira, 27 de junho de 2025

Assim Israel cava sua própria ruína

 

Foto: Amir Cohen/Associated Press Pool

 

 


 Texto original de Luiz Marques em 23/06/2025 no site Outras Palavras

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Texto editado / NMM:

 Em 2024, a Universidade de Uppsala (UCDP) registrou 61 conflitos ativos no mundo, “o maior número desde o início das estatísticas em 1946. Onze desses conflitos atingiram o nível de guerra, definido como um conflito que causa pelo menos 1.000 mortes relacionadas a batalhas em um ano”. 

Essa proliferação de guerras ocorre justamente quando a humanidade precisa de cooperação para desacelerar o aquecimento global e reverter a destruição da natureza. Em 2024, o orçamento militar global superou 2,7 trilhões de dólares, um aumento de 9,4% em termos reais (já descontada a inflação) em relação a 2023. É o 10o ano consecutivo de aumento. Em 2024, os aumentos mais significativos ocorreram na Europa e no Oriente Médio (+65% em Israel).

As estimativas são de que a engrenagem militar responde por 5,5% das emissões globais de gases de efeito estufa. Se essa engrenagem fosse um país, esse “país” seria o quarto mais emissor do mundo, após apenas a China, os Estados Unidos e a Índia. 

1. Sudão e Israel

Nesse contexto, avançam impunes os dois maiores genocídios deste século, ambos iniciados em 2023. O primeiro está de volta a Darfur, no Sudão, após o genocídio de 2003-2005.  Visando o controle de recursos hídricos, terras agrícolas, reservas de metais e de gás natural, generais travam uma guerra intestina, apoiados, de um lado, pela Arábia Saudita e, de outro, pelos Emirados Árabes.  Esse conflito afeta sobretudo os grupos étnicos não árabes, mas o país como um todo é vitimado; e já matou 150 mil pessoas, forçou o deslocamento interno de 8,6 milhões e o deslocamento externo de outros 4 milhões. O abandono da agricultura está levando 24,6 milhões de pessoas a um estado de insegurança alimentar aguda.

O segundo genocídio, bem documentado e condenado pelo Tribunal Penal Internacional, ocorre desde outubro de 2023 em Israel, sobretudo na Faixa de Gaza e na Cisjordânia, e tem por vítimas os palestinos.

Esse genocídio sem precedentes em nosso século está se consumando com as armas, a logística e o apoio econômico e diplomático dos Estados Unidos e de vários países da Europa. Em março de 2025, a vice-presidente da Comissão europeia, Kaja Kallas, declarou, em visita oficial a Israel, que o país “é um parceiro muito relevante para a União Europeia e também um ator maior no setor de tecnologia.” Em “Os últimos dias de Gaza”, Chris Hedges resume o que os “ótimos parceiros” da União Europeia estão cometendo:

“O genocídio está quase completo. Quando estiver concluído, terá não apenas dizimado os palestinos, mas terá também exposto a falência moral da civilização ocidental. (…) Dois milhões de pessoas estão acampadas entre os escombros ou ao ar livre. Dezenas são mortas e feridas diariamente por granadas, mísseis, drones, bombas e balas israelenses. Falta-lhes água limpa, remédios e alimentos. Chegaram a um ponto de colapso. Doentes. Feridas. Aterrorizadas. Humilhadas. Abandonadas. Destituídas. Famintas. Sem esperança”.

Até semanas antes de 7 de outubro de 2023, data do ataque mortífero do Hamas contra militares e civis israelenses, a intenção do governo de Israel nunca foi derrotar essa organização. Ao contrário. Netanyahu dizia que convinha fortalecer o Hamas e enfraquecer Mahmoud Abbas, presidente da Autoridade Palestina na Cisjordânia, dificultando assim o estabelecimento de um Estado palestino unificado.

Mark Mazzetti e Ronen Bergman confirmam que durante anos, o Qatar enviou milhões de dólares para a Faixa de Gaza, fortalecendo o Hamas, com total apoio de Netanyahu. E isso, repita-se, até setembro de 2023… Netanyahu agora usa o ataque do Hamas como pretexto para pôr em prática sua real intenção: reduzir Gaza a pó, exterminar ou expulsar sua população desse território. Essa intenção foi abertamente proclamada por ele em uma declaração ao seu Parlamento: “O único óbvio resultado será que os habitantes de Gaza escolherão emigrar. Mas nosso problema é encontrar países que os aceitem”. Também o ministro das Finanças de Israel, Bezalel Smotrich, afirmou que “em alguns meses, poderemos dizer que vencemos. Gaza será totalmente destruída”.  Em uma mensagem na rede digital “X”, de 2025, o ministro da Defesa de Israel, Israel Katz, ofereceu aos palestinos a alternativa: “partir ou morrer”. Julian Fernandez e Olivier de Frouville, professores de direito internacional, denunciaram essa intenção genocida:

“Raramente na história se ouviu um alto funcionário do Estado expressar tão abertamente a intenção de destruir parte de um grupo humano como na recente mensagem do ministro da Defesa israelense”.

Com o genocídio e a destruição de Gaza, Israel pode também se apoderar das jazidas de gás natural no Mediterrâneo. Ocorre que os planos de Netanyahu de criar uma “Grande Israel” estão redundando na autodestruição de seu país.

2. Genocídio: fatos e números

Até setembro de 2023, a Faixa de Gaza concentrava uma população de cerca de 2,3 milhões de pessoas em um território de 365 km2, área equivalente a apenas 24% da área do município de São Paulo. Essa população está sendo exterminada. Segundo o Euro-Med Human Rights Monitor, já no primeiro mês dos bombardeios, Israel lançou sobre a Faixa de Gaza “o equivalente a duas bombas nucleares”. Até abril de 2024, foram lançadas 70 mil toneladas de bombas, mais que a soma das bombas lançadas sobre Londres, Hamburgo e Dresden na Segunda Guerra Mundial. Em outubro do mesmo ano, 85 mil toneladas de bombas haviam arrasado esse território. Segundo a ONU, em finais de 2024 Israel já havia destruído mais de 66% do patrimônio edificado da Faixa de Gaza.

 A Figura 1 mostra que até 11 de janeiro de 2025, nove em cada 10 construções haviam sido destruídas por Israel nas quatro maiores cidades e em áreas circundantes na Faixa de Gaza.

Figura 1 – Cidades e territórios bombardeados ou demolidos por Israel até 11 de janeiro de 2025 na Faixa de Gaza. Fonte: Emma Graham-Harrison et al., “A visual guide to the destruction of Gaza”. The Guardian, 11 jan. 2025.

 

Israel impôs o deslocamento de mais de dois milhões de pessoas em Gaza, muitas delas várias vezes. Também na Cisjordânia, o exército de Israel arrancou de suas casas cerca de 40 mil palestinos, o maior ato de deslocamento de civis nesse território desde a guerra dos seis dias em 1967.

Segundo a ONU, até 18 de junho de 2025, Israel matou 55.297 e feriu 125 mil palestinos, perdendo 1.200 de seus soldados em Gaza. O Escritório do Alto-Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos (OHCHR) estimou que, durante os primeiros seis meses desse massacre, cerca de 70% das vítimas fatais eram mulheres e crianças, pois as bombas lançadas por Israel atingiam áreas amplas e densamente habitadas. Ademais, as forças armadas de Israel mataram centenas de agentes internacionais, funcionários da ONU, paramédicos e jornalistas, todos protegidos pela lei internacional.

O número real de mortes palestinas é, com toda probabilidade, mais de três vezes maior do que as estimativas oficiais.

A matança continua, não apenas por bombas e balas, mas por desnutrição, doenças e epidemias, dado que Israel continua bloqueando ou dificultando ao máximo qualquer assistência humanitária a essa população.

3. O Estado da Palestina e a cumplicidade da Europa

Em março de 2025, 147 dos 193 membros da ONU reconhecem o Estado da Palestina, estabelecido pela ONU em novembro de 1947. A Figura 2 mostra os Estados que o reconhecem e os que não o reconhecem.

Figura 2 – Mapa dos 147 países que reconhecem o Estado da Palestina (em verde) e dos países que não o reconhecem (em cinza). Fonte: Wikipedia, “International Recognition of Palestine”, baseado em dados da ONU.

 

Desde 1948 e ainda mais em 1967, Israel ocupou militarmente territórios além dos que lhe haviam sido outorgados pela ONU em 1947, infligindo mortes e humilhação não apenas ao povo palestino, mas também aos povos do Líbano, Síria, Iêmen e Irã. Desde 1967, a Assembleia Geral da ONU adotou mais de 160 Resoluções contra Israel, exigindo, entre outras coisas, seu desarmamento nuclear e a desocupação dos territórios palestinos. 

Resoluções da ONU repetem-se até hoje, apelando, em vão, para que o Estado de Israel recue para suas fronteiras anteriores a 1967 e reconheça os direitos dos palestinos à constituição de um Estado nacional soberano.

No âmbito do ordenamento jurídico internacional, Israel é, portanto, um Estado fora da lei, um Estado pária. Gigantescas e reiteradas manifestações populares em vários países europeus demonstram solidariedade com os palestinos e indignação contra Israel. Mas seus governos continuam submetidos ao Diktat dos Estados Unidos e apoiando Netanyahu, condenado pelo Tribunal Penal Internacional por usar fome “como método de guerra”, atacar intencionalmente a população civil e cometer “outros atos desumanos”. 

Figura 3 – Principais fornecedores de armas a Israel em porcentagens, entre 2016 e 2024. Fonte: Matthew Ward Agius, “Quem são os grandes fornecedores de armas de Israel?” DW, 30 maio 2025.

 

Os Estados Unidos lideram o belicismo global, com um orçamento militar de US$ 997 bilhões em 2024 (36,7% do orçamento militar global). Em 2016, o país se comprometeu a fornecer US$ 3,8 bilhões por ano em ajuda financeira militar a Israel entre 2019 e 2028. Até 2024, a Alemanha só aumentou suas exportações de armas a Israel. A França e o Reino Unido são igualmente cúmplices do genocídio. Segundo dossiê da ONG Progressive International, produzido em cooperação com outras ONGs:

“A França desempenhou e continua a desempenhar um papel central no tráfico de armas para Israel, não para fins defensivos, mas para serem usadas contra o povo de Gaza e da Cisjordânia. (…)

Também as empresas do Reino Unido continuam a vender a Israel tanques de guerra, bombas, granadas, torpedos, minas e mísseis.

4. A cumplicidade tácita do Brasil

O Brasil reconhece desde 2010 o Estado Palestino, e Lula tem sido certeiro em suas palavras:

“O que nós estamos vendo não é uma guerra entre dois exércitos preparados, é um exército matando mulheres e crianças na Faixa de Gaza. Isso não é uma guerra, é um genocídio”.

Os atos não acompanham essas belas palavras. O Brasil encomendou à Elbit Systems de Israel 36 veículos blindados de combate e forneceu 9% do petróleo bruto importado por Israel nos primeiros nove meses dos bombardeios sobre a Faixa de Gaza. O Brasil exporta barras de aço para a indústria bélica israelense. Como lembra Vinícius Konchinski, “basta uma ordem de Lula para que determinados negócios sejam proibidos”.

As universidades e a ciência não estão acima da ética. Em 6 de agosto de 2024, o Conselho Universitário da Unicamp rejeitou a proposta de 160 docentes de suspensão de um convênio com a Technion, que se define como a “coluna dorsal” da tecnologia militar de Israel. A FAPESP e a Technion celebraram um Acordo de Cooperação em setembro de 2024, quase um ano após o início do genocídio.  Além disso, o governo federal brasileiro, a USP e a UFMG têm convênios e acordos científicos com universidades israelenses.

5. “Efeito bumerangue”, crises ambientais e emigração: a inviabilização de Israel

Chegamos aqui ao núcleo duro deste artigo. Dominado pelo sionismo de extrema-direita, pelo nacionalismo suprematista, pelo racismo, pelo revanchismo e pela teocracia, o governo de Israel está não apenas matando a riquíssima tradição cultural judaica, mas também a viabilidade mesma dessa sociedade.

Comecemos pelas consequências de uma economia de guerra. Entre 2001 e 2021, a guerra do Afeganistão custou aos Estados Unidos US$ 2 trilhões. E muitas das consequências econômicas dessa guerra estão ainda por vir. A economia de Israel está em vias de colapsar sob o peso de despesas militares, não só na Palestina, mas no Líbano, na Síria, no Iêmen e, agora, no Irã. Limito-me aqui a cinco rápidas observações:

(1) O bombardeio das centrais nucleares iranianas poderia causar uma grave contaminação radioativa no Golfo Pérsico. Em resposta a Trump [que atacou o Irã sem declaração de guerra, contrariando a Constituição estadunidense e a Carta das Nações Unidas], o Irã poderia fechar o Estreito de Ormuz, por onde passam 20 milhões de barris de petróleo por dia, o que poderia levar a uma crise econômica gigantesca e a um confronto militar generalizado. 

(2) Israel não é signatário do Tratado de Não Proliferação de Armas Nucleares, tem hoje ao menos 90 ogivas de plutônio e está aparentemente expandindo seu próprio arsenal nuclear.

(3) O Irã, ao contrário, é signatário desse Tratado;  e, segundo Piotr Smolar, é consenso entre especialistas que não há provas de um esforço do Irã para a construção de uma bomba atômica.

(4) A agressão ao Irã tem, entre suas várias causas, desviar a atenção mundial do genocídio palestino.

(5) O primeiro-ministro da Alemanha, Friedrich Merz, afirmou que, ao atacar o Irã, Israel faz “o trabalho sujo por nós”.

Em 2024 o orçamento militar de Israel aumentou 65% em relação a 2023, atingindo US$ 46,5 bilhões, ou seja, 8,8% de seu PIB! Desde outubro de 2023, essa atividade militar custou à economia e aos cofres públicos de Israel cerca de US$ 85 bilhões. Mas isso era antes do ataque ao Irã, que teria custado, só nos dois dias iniciais dos combates, US$ 1,45 bilhão, entre operações ofensivas e defensivas; sem mencionar os prejuízos econômicos generalizados. Já antes do ataque ao Irã, em maio de 2025, o Times of Israel intitulou um de seus artigos: “Os custos da guerra colocam os serviços públicos de Israel em risco de colapso”. Em 2025, o turismo em Israel deve entrar em colapso.

Incomparavelmente mais grave e irreparável do que a crise econômica, são as perdas em vidas humanas em guerras e, sobretudo, em decorrência da devastadora crise ambiental ecológica, alimentar, sanitária e climática, apenas iniciada. A censura imposta à imprensa pelo governo de Israel impede estimativas sobre o número de vítimas da guerra contra o Irã. Desde 14 de junho, centenas de mísseis iranianos atingiram edificações militares e civis em Tel Aviv, Jerusalém e outras cidades israelenses.

Isso posto, um saldo incomparavelmente maior de vítimas advirá do que se pode chamar de “efeito bumerangue” do bombardeio israelense sobre o povo palestino. Israel é um país de 21,9 mil km2, cerca da metade da área do estado do Rio de Janeiro (43,7 mil km2). Assim sendo, a destruição imposta à Faixa de Gaza e ao Líbano não ficará apenas em Gaza e no Líbano. Cedo ou tarde, ela se voltará contra Israel, pois a poluição dos solos, da água e do ar (inclusive pelos milhares de cadáveres em decomposição) não conhece fronteiras. Os solos de Gaza e do sul do Líbano estão hoje saturados de metais pesados e dos resíduos de bombas incendiárias à base de fósforo branco (substância altamente tóxica), uma arma proibida pelo Protocolo III da Convenção das Nações Unidas, em regiões com população civil. O fósforo branco e os mais de 50 milhões de toneladas de detritos potencialmente tóxicos, inclusive amianto, lançados à atmosfera pelas bombas israelenses em Gaza e no sul do Líbano, já atingiram ou atingirão também a água e os solos israelenses, bem como o ar que eles inalam. Graves problemas de saúde poderão surgir – inclusive o mesotelioma, um tipo de câncer do mesotélio, tecido que reveste vários órgãos humanos, cuja causa principal é a exposição ao amianto. Em fevereiro de 2025, a Oxfam publicou que mais de 80% de toda a rede de água e de saneamento básico de Gaza já havia então sido destruída pelas bombas israelenses. Repita-se: o que ocorre em Gaza não fica apenas em Gaza. A infiltração de água poluída nos lençóis freáticos e no mar, e o colapso da gestão de resíduos urbanos aumentarão os riscos de epidemias por bactérias, vírus, fungos etc. Netanyahu e os seus estão condenando também os israelenses a morrer ou a adoecer por câncer, intoxicação e infecções sem precedentes.

Também a agricultura de Israel foi atingida, com impactos crescentes sobre a segurança alimentar no país. E é lícito se perguntar o que esses solos contaminados reservam aos futuros agricultores e consumidores israelenses.

No que se refere à emergência climática, Israel é exemplo do negacionismo contemporâneo. Desde outubro de 2023, a máquina de guerra israelense produziu mais de 32 milhões de toneladas de dióxido de carbono. As piores consequências dessas emissões estão ainda por vir, mas o clima atual já tem causado secas e incêndios gravíssimos. A taxa de aquecimento em Israel nas últimas três décadas já é o dobro da média global, e continua subindo.

No próximo decênio, mesmo sem mais aceleração do aquecimento, os israelenses sofrerão picos de calor insuportáveis. Além disso, desde 1992 o nível do Mediterrâneo oriental subiu em média 4,7 mm por ano, uma velocidade 40% maior do que a elevação média global. Nos próximos 20 anos, o mar ameaçará cidades, estradas e estações de dessalinização israelenses.

O medo, a instabilidade política, a crise econômica e socioambiental já se refletem na crescente emigração do país. Já em maio de 2024, o The Times of Israel publicava dados impressionantes:

“Quase 60.000 israelenses deixaram o país no ano passado e não retornaram – mais do dobro do número registrado em 2023. Cerca de 40% dos israelenses que ainda estão aqui estão considerando partir”.

Portanto, quase 90 mil israelenses [muitos com alta qualificação] deixaram o país e não retornaram em 2022 e 2023. Além disso, uma pesquisa realizada em março de 2024 pela Hebrew University revelou que 80% dos israelenses que vivem no exterior não pretendem voltar a Israel.

Enquanto isso, o governo de Israel tenta convencer seus cidadãos de que a ameaça existencial que paira sobre o país advém… dos palestinos e do Irã! Os que criticam um Estado teocrático, genocida e autodestrutivo, são acusados de antissemitismo pela engrenagem sionista.

6. Estados Unidos e Europa, ávidos de guerras

Marx afirmava, no rastro de Hegel: “A violência é a parteira de toda velha sociedade grávida de uma nova”. Em nossas sociedades parturientes de um colapso socioambiental global, essa parteira tem dado à luz apenas monstros que geram monstros ainda mais abomináveis.

“A Europa deve adotar uma mentalidade de guerra”, afirmou em 2024, Mark Rutte, secretário-geral da Otan. Essa “mentalidade de guerra” acelerará o aquecimento na Europa e demais países da Otan. O mesmo ocorre com Israel, que acelera seu próprio processo de colapso moral, econômico e socioambiental.

Isso posto, estamos assistindo, ainda que tardiamente, a um sobressalto de ética e de consciência humanitária em muitos países, inclusive no nosso. Milhares de pessoas têm saído às ruas para pressionar o governo Lula a ir além da retórica, endossando na prática a proposta  da Comissão Brasileira Justiça e Paz (CBJP) e de mais quatro instituições: (1) o imediato cessar-fogo e fim da ocupação militar em Gaza e em todos os territórios palestinos; (2) o fim do bloqueio a Gaza e a garantia de acesso irrestrito à ajuda humanitária; (3) o boicote econômico e diplomático a Israel até que cesse a violência e sejam respeitados os direitos do povo palestino; (4) a punição pelo Tribunal Penal Internacional dos responsáveis por crimes de guerra e genocídio e, principalmente, (5) o reconhecimento pleno do Estado da Palestina nas fronteiras determinadas pela ONU. 

Esses cinco pontos são cruciais para a sobrevivência do povo palestino e, não menos, para a sobrevivência dos próprios israelenses.

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